O curioso caso de Calmon

Cidade no Meio-Oeste tem a pior taxa de vacinação contra Covid-19 e o maior índice de letalidade para a doença em Santa Catarina. Moradores ainda choram a morte de parentes negacionistas enquanto retomam a vida no pequeno município de 3 mil habitantes que se sustenta da agricultura. Em uma comunidade onde a fonte de notícia local é o WhatsApp, a desinformação tem terreno fértil para se propagar de casa em casa. Mas há esperança, e ela tem nome: ciência.

O curioso caso de Calmon

Cidade no Meio-Oeste tem a pior taxa de vacinação contra Covid-19 e o maior índice de letalidade para a doença em Santa Catarina. Moradores ainda choram a morte de parentes negacionistas enquanto retomam a vida no pequeno município de 3 mil habitantes que se sustenta da agricultura. Em uma comunidade onde a fonte de notícia local é o WhatsApp, a desinformação tem terreno fértil para se propagar de casa em casa. Mas há esperança, e ela tem nome: ciência.

REPORTAGEM
Luana Amorim

IMAGENS
Patrick Rodrigues

EDIÇÃO
Augusto Ittner

WEBDESIGN
Tayná Gonçalves

EDIÇÃO DE VÍDEO
João Scheller

Na beira da estrada de terra e debaixo de um pessegueiro, as netas de Rute Ediclei de Souza brincam e riem enquanto ela, sentada em uma cadeira na varanda, as observa de longe. Ao lado, os filhos e a nora tocam o mercado que ela abriu com o marido, anos atrás, no interior de Calmon, no Meio-Oeste do Estado. Um sonho que foi compartilhado por 25 anos, mas interrompido em julho. José Leocir de Almeida, 46, foi uma das vítimas da Covid-19 na pequena cidade de pouco mais de 3 mil habitantes, antes mesmo de tomar a vacina contra a doença.

 

A alguns quilômetros dali, outra família também vive o luto. Ao lado do gato, que aparece de vez em quando pedindo um carinho, está a mulher de Guilherme*, morto por complicações do coronavírus também em julho. Há uma diferença, porém, em relação ao marido de Rute: a morte dele aconteceu depois de o morador de Calmon recusar a vacina contra a doença. Ele negou o imunizante, se infectou e morreu dias depois.

 

Além deles, outros cinco moradores perderam a vida após contrair o vírus, segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde (SES), o que fez com que a cidade atingisse uma taxa de letalidade de 14% – o número leva em conta a quantidade de óbitos em relação aos casos confirmados da doença. É, de longe, o pior percentual entre todas as cidades catarinenses. Para se ter uma ideia, Florianópolis, a Capital do Estado, a taxa de letalidade é de 1,3%. A taxa também é oito vezes a média catarinense (1,62%) e cinco vezes a nacional (2,78%).

Calmon ainda ostenta o pior desempenho em imunizados contra a Covid-19 em Santa Catarina: até sexta-feira, 17 de dezembro, apenas 27,38% da população havia tomado as duas doses ou a dose única.

A recusa da vacina fez com que moradores morressem por Covid-19 e deixassem famílias enlutadas no município

Apesar das dificuldades e dos dados negativos que rondam o minúsculo município ladeado por Caçador, a “Capital da Hospitalidade” — como é reconhecida Calmon por lei estadual — ainda busca, em meio à resistência e ao negacionismo, forças para combater o coronavírus.

cruz cemitério calmon covid

Em dois anos, sete pessoas morreram, vítimas da Covid-19, no município – uma se recusou a tomar

a vacina

Em dois anos, sete pessoas morreram, vítimas da Covid-19, no município – uma se recusou a tomar

a vacina

“Muita mentira, muita anedota”

A história da pequena Calmon está entrelaçada com a Guerra do Contestado. Foi na cidade que em setembro de 1914, sertanejos incendiaram a serraria da, até então, vila que pertencia ao município de Porto União, no Planalto Norte do Estado. A região só foi elevada à categoria de município em 1993, quando deixou de ser um distrito de Matos Costa, também na região Meio-Oeste.

 

A cidade se divide em dois: há aqueles que vivem no pequeno Centro e outros que estão na zona rural, principalmente nos assentamentos, verdadeiras comunidades que têm vida própria. A principal renda das famílias vem da agricultura. Outro aspecto sobre Calmon é que a cidade tem o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Santa Catarina, com 0,622, ficando à frente apenas de Cerro Negro, na Serra. Os dados são do último censo do IBGE, de 2010.

 

Só que nem mesmo esse isolamento social geográfico impediu que a comunidade escapasse da Covid-19. O primeiro caso foi confirmado no dia 27 de junho de 2020: o paciente era um homem de 47 anos, que trabalhava em Caçador. Três meses depois, a primeira morte: um homem de 46 anos, em 30 de setembro.

 

Mesmo com as infecções confirmadas e as mortes vindo atreladas, a médica Bruna Lahana El Mohamad Neves, que atua há mais de 20 anos no município, relata que muitos moradores não levaram a pandemia a sério quando ela surgiu. Acharam que era apenas uma gripezinha.

 

— As pessoas não entendiam e muitas vezes não colaboravam. Nós explicamos o que estava acontecendo, mas tinha muita mentira, muita anedota, de modo que [os moradores] tinham bastante resistência ao uso de máscara e [promoviam] aglomeração. Além disso, eles saíam para outros municípios quando não era aconselhado e muitas vezes voltavam com a doença — pontua.

Bruna Lahana El Mohamad Neves, médica que atua há mais de 20 anos no município

As pessoas não entendiam e muitas vezes não colaboravam. Nós explicamos o que estava acontecendo, mas tinha muita mentira, muita anedota, de modo que [os moradores] tinham bastante resistência ao uso de máscara e [promoviam] aglomeração

Bruna Lahana El Mohamad Neves, médica que atua há mais de 20 anos no município

A profissional de saúde lembra que as pessoas passaram a ter consciência sobre o poder de transmissão do vírus quando as primeiras mortes foram registradas na cidade. O sentimento também é compartilhado por Fernanda Vieira Nacalski, de 34 anos, que é natural de Calmon. A comerciante viu o cenário da cidade em que cresceu mudar em questão de dias. O sonho do negócio próprio, inclusive, teve de ficar engavetado por quase dois anos, devido ao medo de novas restrições por conta da pandemia. 

 

— No começo as pessoas achavam que não era sério. De repente, foram acontecendo os casos e aí a preocupação aumentou. Na época, nós chegamos a ficar em dúvida se podíamos sair ou não de casa — diz. 

moradora calmon covid

Dona de um estabelecimento em Calmon, Fernanda alega que a preocupação com a Covid aumentou depois da confirmação dos primeiros casos

Dona de um estabelecimento em Calmon, Fernanda alega que a preocupação com a Covid aumentou depois da confirmação dos primeiros casos

Além das restrições ao comércio, a cidade também teve de aplicar outros protocolos para evitar o contágio. Na região dos assentamentos, por exemplo, onde os moradores precisam do transporte da prefeitura para ter acesso às escolas e postos de saúde, o município deixou de levar em um mesmo carro alunos e pacientes que precisavam de atendimento.

 

— Foi a partir de julho e agosto [do ano passado] que deu uma agravada bem grande. Os números aumentaram repentinamente — lembra o médico Ricardo Sakamoto Pessoa, que atua no município há três anos. 

 

Atualmente a estrutura de saúde de Calmon conta com duas unidades de saúde — uma localizada no Centro da cidade e outra na área rural, na região dos assentamentos — e dois médicos, que atendem os moradores de segunda a sexta-feira. Aos fins de semana, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, há um enfermeiro 24 horas, que atende os casos mais graves, que são encaminhados aos hospitais de referência em Caçador, que fica a 30 minutos de distância, e Porto União, que fica a uma hora de Calmon.

 

Além disso, a cidade tem de lidar com a falta de recursos. Segundo o médico Ricardo Sakamoto, até o ano passado, era ele quem pagava a internet da unidade de saúde que fica no interior do município. Tecnologia essa que ele diz ter sido essencial durante a pandemia.

 

— Nós fazíamos o acompanhamento por telefone e a cada dois dias a visita domiciliar. Os pacientes falavam ‘estou ruim, com falta de ar’, nós fazíamos a visita com a médica e entregávamos os medicamentos, sempre com o acompanhamento com o telefone. Mesmo sendo um assentamento, com difícil acesso, eles têm internet, têm acesso a tecnologias e isso ajudou muito, porque se não tivesse acesso a isso, estava um caos — diz o médico. 

Mesmo com o uso obrigatório, muitas pessoas deixaram de fazer o uso de máscara no município

secretaria de saúde calmon covid
secretaria de saúde calmon covid

Mesmo com o uso obrigatório, muitas pessoas deixaram de fazer o uso de máscara no município

“Muié do céu, cuide das piazadas”

A poeira que sobe pela estrada de terra batida é familiar a Rute Ediclei de Souza, 45 anos. Na varanda, ela enche a cuia e serve o chimarrão para as visitas, que a viram crescer na pequena comunidade no interior de Calmon, enquanto aguarda a chegada das netas da escola.

 

O barulho da correria, das brincadeiras e das risadas dá a entender que há dezenas de pessoas naquela pequena casa, que fica anexa ao mercado que Rute toca junto com o filho e a nora. Essa sensação, porém, não é capaz de preencher o silêncio que a toma ao rever as mensagens e a última foto que tirou com o marido, José Leocir de Almeida, 48 anos.

 

— Nos conhecemos aqui. Ele se criou e eu me criei aqui. Nesses 25 anos, tivemos dois filhos, uma menina e um piá. Meu filho e minha nora estão me ajudando aqui, porque precisa tocar o barco né? — diz enquanto olha a imagem, feita uma semana antes dele contrair a

Covid-19.

 

Conhecido pelo apelido de Sapo pelas redondezas, Leocir era uma pessoa alegre e sempre preocupada com a família. Seus prazeres, além de brincar até tarde com os netos, era sair para “carnear” e pescar com os amigos. Ao passar pela estrada, que leva até a casa, inúmeras são as pessoas que o reconhecem. 

vítima covid calmon

Leocir, aos 46 anos, morreu de Covid-19 antes de receber a vacina contra a doença 

Leocir, aos 46 anos, morreu de Covid-19 antes de receber a vacina contra a doença 

No entanto, a história dele foi interrompida no fim de junho deste ano, quando sentiu os primeiros sintomas da Covid-19. Além de Leocir, os dois filhos e a nora também contraíram a doença.

 

— Na verdade, ele achou que era coluna, mas era Covid. Nós queríamos levá-lo ao médico, mas ele era muito teimoso e não queria ir. Até que na quinta-feira, consegui levar ele e, no dia seguinte, fomos encaminhados a Porto União, onde fez uma tomografia. Lá, o médico disse que o pulmão dele tinha sido atingido em 50%. No sábado, foi para 75% — relembra.

 

Esses foram os últimos momentos em que Rute viu o marido. Depois, os dois passaram a trocar mensagens pelo celular. Em áudios, onde já se ouvia a dificuldade de falar, Leocir pedia para a mulher cuidar da família:

 

— Ele indo para o hospital, pedia que eu cuidasse dos outros. Ele dizia “muié do céu, cuide das piazadas para não acontecer nada com eles, nunca vou me perdoar, vou me sentir culpado o resto da vida”. E eu dizia que não tinha sido ele que passou pra eles [a Covid], às vezes pegaram de outras pessoas.

 

Depois de Porto União, Leocir foi internado em Caçador e, por fim, transferido para Lages, na Serra catarinense, onde permaneceu por 18 dias internado na UTI. Ele não resistiu e morreu no dia 12 de julho deste ano. O marido de Rute ainda não tinha se vacinado contra a Covid-19.

 

— No começo, ele tinha muito medo de pegar essa doença e depois, quando não tinha mais medo, ele pegou. É uma coisa que eu até comento com a minha filha: por quê? Ele era um bom pai, um bom esposo. Eu nunca pensei que ela [a Covid]  ia atingir a minha família, mas tudo é a vontade de Deus, né? — fala enquanto segura as lágrimas. 

Rute Ediclei de Souza, 45 anos 

Eu nunca pensei que ela [a Covid] ia atingir a minha família, mas tudo é a vontade de Deus, né?

Rute Ediclei de Souza,

45 anos

O negacionista que pediu por clemência

Dados do Painel do Coronavírus da NSC mostram que Calmon tem a maior taxa de letalidade da Covid-19 de Santa Catarina, com 14%. O número leva em conta a proporção de mortes por número de casos confirmados na cidade. A taxa é oito vezes a média catarinense (1,62%) e cinco vezes a nacional (2,78%).

 

Depois de Calmon, as cidades com o maior índice de letalidade em Santa Catarina são São Cristóvão do Sul (5,61%), Bela Vista do Toldo (5,43%), Marema (5,10%) e Lebon Régis (4,98%). 

O médico Ricardo Sakamoto Pessoa aponta que as pessoas com comorbidade foram as que mais sofreram na cidade, principalmente no início da pandemia. Mesmo assim, ele recorda dos “teimosos” — como ele mesmo se refere — e dos negacionistas, que recusaram a vacinação mesmo quando ela já estava à disposição.

 

— Aqueles que não tomaram a vacina chegaram a pedir até clemência para ajudar eles [depois de contrair o vírus]. No leito, um pedia ajuda e dizia que estava arrependido de não ter tomado a vacina, não ter buscado o medicamento antes. Mandamos até para o [atendimento] particular, para fazer tudo o possível para salvar ele, mas infelizmente não deu — salienta. 

Ricardo Sakamoto Pessoa, médico

No leito, ele pedia ajuda e dizia que estava arrependido de não ter tomado a vacina, não ter buscado o medicamento antes.

Ricardo Sakamoto Pessoa, médico

A secretária de saúde do município, Claúdia Richter dos Santos, rebate os dados do governo de Santa Catarina e diz que, na contagem do município, foram registrados cinco óbitos. Os dois adicionais que constam nos números do Estado seriam de pessoas que moravam em outras cidades, mas que o cadastro continuava em Calmon.

 

Questionada sobre o acompanhamento da situação na cidade, a Diretoria de Vigilância Epidemiológica (Dive-SC) disse apenas que o monitoramento das informações ocorre de forma diária, “inclusive com a divulgação de um boletim epidemiológico com a análise das 17 regiões de saúde”. A pasta salientou que sempre que há um aumento no número de casos e óbitos, as equipes regionais e municipais são acionadas para a orientação das medidas que devem ser tomadas. 

Cidade conta com apenas uma pessoa para aplicação da vacina contra a Covid na população

vacina calmon covid
vacina calmon covid

Cidade conta com apenas uma pessoa para aplicação da vacina contra a Covid na população

Baixa taxa de vacinação é erro no sistema, alega prefeitura

Em Calmon, até sexta-feira (17), 27,38% da população estava imunizada contra a Covid, conforme dados da Secretaria de Estado da Saúde. Em relação à primeira dose, o número sobe para 48,65%. Isto faz com que a cidade tenha o menor percentual de vacinados com a segunda dose ou vacina de dose única em SC.

 

A prefeitura de Calmon rechaça a informação. Segundo o município, a cobertura atual é de 95% da população e que há um problema no registro das doses no sistema estadual.

 

— As meninas estão lançando [os dados], mas não aparece essa evolução desse lançamento no sistema. Estamos discutindo com a secretária e a regional de saúde para saber o que está acontecendo — explica Daniel Dias, gerente de Enfermagem da cidade. 

Atualmente, Calmon conta com uma pessoa para vacinação. Apenas em dias de mutirão outra agente de saúde ajuda na imunização da comunidade. Após aplicar a vacina, os dados dos pacientes são anotados em um caderno para, posteriormente, serem repassados no sistema. Segundo a aplicadora e técnica de enfermagem, Tassia Zaias, o método funciona. 

 

— Na correria, eu não consigo fazer a aplicação e o lançamento do sistema. Isso eu faço no dia posterior, nunca fica acumulado. Mas funciona, temos o controle da primeira e da segunda dose e, quando a pessoa não volta, fazemos a busca ativa — garante. 

 

Em nota, a Dive-SC confirmou que, no fim de novembro, foi identificada uma inconsistência nos dados de vacinação em Calmon. Isto porque o município “estava fazendo o registro em uma função do sistema que não estava habilitada”.

 

Depois de uma reunião entre o governo e o município, a secretaria foi orientada a fazer o registro de forma correta. Porém, devido a outro problema, dessa vez com os sistemas do Ministério da Saúde, os dados não estão sendo transmitidos ao vacinômetro estadual.

 

O Diário Catarinense entrou em contato com o Ministério da Saúde, mas ainda não obteve retorno. 

Boatos também atrapalharam vacinação

Apesar do suposto erro no sistema, Calmon também enfrenta resistência à vacina contra a Covid-19. Até hoje, inclusive, há pessoas que não se imunizaram contra a doença na cidade. Entre elas está Claudir José Caramori, de 59 anos, dono do único posto de combustíveis por lá. Local que, diariamente, recebe inúmeras pessoas, já que faz parte do trecho que liga os Estados de Santa Catarina e Paraná:

 

— Não tomei a vacina e não vou tomar, porque para mim nem é vacina isso aí.

dono do posto calmon covid

Dono do único posto da cidade, Claudir alega que não irá se vacinar contra a doença

dono do posto calmon covid

Dono do único posto da cidade, Claudir alega que não irá se vacinar contra a doença

Tassia Zaias, responsável pela sala de vacinação da cidade, diz que, logo no começo da campanha nacional de imunização contra a Covid-19, a maior resistência vinha dos idosos. E as justificativas eram inúmeras. 

Sakamoto Pessoa, médico

Sempre têm aqueles que veem na internet ou que fulano de tal falou pra mim que a vacina que tomei fez mal, que eu fiquei pior depois de tomar a vacina…

Sempre têm aqueles que veem na internet ou que fulano de tal falou pra mim que a vacina que tomei fez mal, que eu fiquei pior depois de tomar a vacina…

Sakamoto Pessoa, médico

Eles escutavam boatos e especulações e acreditavam. Então foi a falta de informação — destaca o médico Sakamoto Pessoa.

 

Fontes ouvidas pela reportagem do DC na cidade dizem que os boatos tinham como principal fonte de informação o negacionismo que jorrava na internet, principalmente nos aplicativos de mensagem. Sem um veículo de comunicação local, os moradores têm por lá o WhatsApp como principal fonte de notícias, o que os expõe a fake news e desinformação.

 

Segundo o professor de Sociologia na Universidade Regional de Blumenau (Furb), Nelson Garcia, o movimento do negacionismo é algo que teve início nos Estados Unidos e se espalhou para outros países. Porém, é nas cidades pequenas, onde há um acesso limitado de informações e cultura, que a prática é disseminada, principalmente no Brasil. 

 

— Como que isso [o negacionismo] chega na cidade do interior, eu posso levantar algumas hipóteses. Esse grupo de negacionistas está nas redes sociais e acaba jogando muita informação, com uma estratégia de capilaridade nas cidades do interior. Isto porque eles já tem uma leitura de que nos grandes centros e nas Capitais, as informações que as pessoas recebem são mais complexas e críticas. Já nas cidades pequenas há uma dificuldade de as pessoas checarem as informações, além de não terem um grau de discernimento para selecioná-las — explica. 

 

O especialista diz, ainda, que a desconfiança na rapidez de produção da vacina e o fato de as pessoas terem contraído o vírus após a aplicação do imunizante, ajuda a trazer o aspecto duvidoso que acaba sendo fomentado por setores conservadores.

 

— Isso começa a despontar pelas redes digitais e aumenta com aquela relação física de vizinhança, quando não se dá conta mais e se espalha um boato. Por isso, cabe ao poder público dessa cidade, criar uma política local para orientar os moradores de que essas informações que estão recebendo não são verdade — diz.

Longe dos grandes Centros, Calmon vê na internet e no WhatsApp uma forma de se informar

mortes covid calmon
mortes covid calmon

Longe dos grandes Centros, Calmon vê na internet e no WhatsApp uma forma de se informar

Negacionista procurou atendimento tarde demais

Os sintomas da Covid-19 surgiram após o companheiro voltar de uma viagem que fez a Itajaí, onde moram os filhos, para tratar de um problema de rim. A mulher conta que ele chegou em casa com tosse e espirros. Demorou uma semana até que ele fizesse o teste.

 

— A nora dele disse para levá-lo [fazer o teste] porque o filho dele confirmou que estava com Covid. Mas ele ficou uma semana inteira e não queria ir. Na sexta, eu fui com ele no postinho, para levar os papéis dos exames que ele fez em Itajaí, e conversei com a enfermeira sobre a suspeita. Daí fizeram o teste e deu positivo — lembra.

esposa vítima covid calmon

Família de Guilherme só buscou a vacina após a morte do idoso

esposa vítima covid calmon

Família de Guilherme só buscou a vacina após a morte do idoso

Depois disso, a situação só piorou. A companheira conta que, ao chegar em casa, ele deitou na cama e só saia para ir ao banheiro. Três dias depois, com a piora na saúde, uma enfermeira foi chamada e ele foi encaminhado ao hospital em Caçador. 

 

— Foi rápido assim. Lá ele ficou internado e não saiu mais. Ficou uma semana lá e já morreu. Bem rapidinho — lamenta.

 

Aos 77 anos, Guilherme* se recusou a tomar a vacina contra a Covid-19, mesmo com as agentes de saúde indo por duas vezes na casa dele. A família só tomou o imunizante após a morte do homem, mas ainda tem dúvidas se vai tomar a terceira dose.

 

Questionada se vacina poderia salvar a vida do companheiro de anos, a mulher diz: 

 

— O que eu vou dizer? Eu não sei, cada um acredita de um jeito. Porque ele estava com problema do rim e diabetes. Se era a hora dele, ou de uma coisa ou de outra ia ser. Eu acredito que seja isso. Foi a hora dele, ele não queria ir e ele acabou indo. Foi só pegar a doença que foi fatal, não conseguiu superar.

 

São histórias de perdas como essa, que poderiam ser salvas com uma simples dose, que ficam na cabeça de Ricardo Sakamoto Pessoa, médico da cidade. Ele relata que também atendeu um paciente que morreu após recusar a vacina.

 

— A pessoa era antivacina. Não tomou a vacina e fez uma festinha. Os amigos dele tinham tomado. Ele não. Infelizmente essa pessoa faleceu, foi bem sofrida [a morte dele], abalou porque era uma pessoa bem conhecida e as pessoas que estavam em volta dele tomaram a vacina e estão todos bem hoje. Então, por ser próximo de nós, também abalou. E o que mais me afetou, foi ele pedindo clemência, pedindo ajuda — recorda.

 

Em nota, o prefeito de Calmon, Hélio Marcelo Olenka (PP), afirmou que o município tem procurado vacinar toda a população, mas reconhece que ainda há resistência por parte de algumas pessoas. Ele também salientou que, desde o início da pandemia, todas as medidas foram tomadas para evitar que o contágio chegasse ao município, “mas infelizmente não foi possível”. 

Ricardo Sakamoto Pessoa recebeu a terceira dose e acredita que a vacina é fundamental para conter a Covid

médico calmon covid
médico calmon covid

Ricardo Sakamoto Pessoa recebeu a terceira dose e acredita que a vacina é fundamental para conter a Covid

O bar onde a vacina é obrigatória

Quase dois anos desde o início da pandemia, a cidade ainda tenta adaptar a rotina. Segundo a secretária de saúde do município, Claúdia Richter, o desafio, agora, está na busca ativa para que as pessoas voltem para tomar a segunda dose e o reforço. Um trabalho de resistência e de “formiguinha” como ela pontua.

 

Atualmente, a cidade não conta com casos ativos da doença. Porém, o uso de máscaras em local aberto continua obrigatório, pelo menos até que os números da vacinação sejam restabelecidos, apesar da gestora admitir que muitos já não fazem mais o uso do equipamento de proteção na cidade.

 

Sobre cuidados com a Covid-19, a prefeitura de Calmon diz que mantém os pedidos por higienização, uso de álcool gel e que cobra o comprovante de vacinação para eventos. É esse último ponto, inclusive, que virou “brecha” para Édson Luiz Schleicher, 47 anos.

 

Com sorriso no rosto, camisa aberta e chinelos, ele é dono de um bar que fica no Centro da cidade. Na entrada, álcool gel é obrigatório. Mas, recentemente, ele estabeleceu outra regra para os clientes: o passaporte da vacinação. E não tem choro. Quer tomar uma cervejinha lá? Só se estiver com as duas doses com dose única.

 

— Até o pessoal que estava ali, antes de chegar, eu perguntei ‘tá com a carteirinha?’ Daí eles mostraram e eu disse ‘tudo certo, então pode ficar’. Eu tenho meus problemas de saúde, não posso facilitar com nada — salienta. 

dono bar covid calmon

Paulista, dono de um bar em Calmon, cobra o passaporte da vacina dos frequentadores

dono bar covid calmon

Paulista, dono de um bar em Calmon, cobra o passaporte da vacina dos frequentadores

Além disso, Paulista, como é conhecido na cidade, também reforça a importância da vacinação para o combate da pandemia.

 

— Na realidade o brasileiro tem que tomar cuidado. Eu tive umas reações, fiquei um pouco mais gripado, mas tomei as duas doses. Agora estou esperando para tomar a terceira dose, quando sair eu vou tomar. A vacinação é o principal — enfatiza.

 

Num país em que mais de 200 Calmons foram dizimadas pelo coronavírus — até esta sexta-feira (17) eram 617 mil mortes —, a esperança está na vacinação. Só ela, como lembra a médica Bruna, é capaz de controlar a pandemia.

 

— Tomem a vacina, não ouçam anedotas, acreditem na ciência.

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é o número oficial de casos confirmados de Covid-19 em Calmon desde o início da pandemia. Desses, 7 pessoas morreram, o que faz com que a cidade tenha a pior taxa de letalidade de SC. 

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é o número oficial de casos confirmados de Covid-19 em Calmon desde o início da pandemia. Desses, 7 pessoas morreram, o que faz com que a cidade tenha a pior taxa de letalidade de SC. 

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Luana Amorim

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