Saudades. Segundo a definição do dicionário, é uma série de sentimentos, geralmente, causados pela ausência de alguém. No mapa de Santa Catarina, é um município de cerca de 10 mil habitantes localizado no Oeste do Estado. Porém, pelo destino, os dois significados se conectaram há um ano por um motivo trágico: a cidade, que traz consigo o título de Vale da Hospitalidade, foi palco de um dos piores crimes da história catarinense – o assassinato de três bebês e duas professoras em uma creche. Histórias que foram interrompidas em apenas 11 minutos, mas que ainda ecoam na memória dos habitantes.
O crime bárbaro ocorreu em 4 de maio de 2021. Um jovem de 18 anos entrou na creche Pró-Infância Aquarela, armado com uma adaga. Ele invadiu uma sala onde as crianças dormiam e desferiu golpes contra uma professora, uma agente educacional e quatro crianças. Apenas um bebê de um ano e oito meses sobreviveu.
O homem foi preso em flagrante no dia do crime. Durante as investigações, policiais encontraram indícios de inspiração em outros ataques a escolas, como os massacres de Suzano, em São Paulo, e o de Columbine, nos Estados Unidos. Ele segue detido em um hospital psiquiátrico, enquanto o processo está suspenso. O homem é réu por cinco homicídios triplamente qualificados, além de 14 tentativas de homicídios.
Um ano depois, o silêncio das ruas continua o mesmo de antes da tragédia, porém com ar de desconfiança. As escolas, que antes ficavam abertas para quem quisesse entrar, agora, contam com vigilantes e portões, que trazem consigo o medo de uma nova tragédia. Os moradores se agarram no receio e na dor de relembrar o dia em que a cidade, tão conhecida pela generosidade e pelo acolhimento, ganhou o mundo devido a suas lágrimas.
As famílias preferem guardar para si as lembranças daqueles que perderam. Um luto que ainda carrega suas cicatrizes, segundo Elemar Sehn, avô da pequena Sara, uma das vítimas da chacina:
— A saudade a gente nunca esquece, né?
as vítimas
Mirla Renner, 20 anos
Sarah Luiza Mahle Sehn, 1 ano e 7 meses
Murilo Massing 1 ano e 9 meses
Anna Bela F. de Barros 1 ano e 8 meses
Keli Anicevski, 30 anos
“Um minuto depois que ele entrou, começaram os gritos de socorro. No momento, achamos que uma criança tinha se engasgado ou que, por conta de um problema na luz, tomou um choque. Mas daí quando saíram gritando por socorro, alguém disse: “Entrou alguém na escola cortando a professora”
Seu Ailton
Sentado no alto da calçada, seu Ailton Biazi Betti, de 65 anos, acompanha diariamente o movimento da Rua Quintino Bocaiúva. É ali que, há 17 anos, o aposentado vive com a família na área industrial de Saudades. Foi dali que ele acompanhou os primeiros passos de uma tragédia que marcou a memória dele para sempre.
Era por volta das 10h de 4 de maio de 2021. Ailton estava na frente do imóvel, junto com duas crianças que ele e a esposa cuidavam pela manhã, quando viu o autor do ataque chegar de bicicleta. Para ele, era só mais um pai que ia até o local para buscar uma criança. Porém, o que ele não imaginava é que a cena, comum de todos os dias, ia se transformar em tragédia.
— Um minuto depois que ele entrou, começaram os gritos de socorro. No momento, achamos que uma criança tinha se engasgado ou que, por conta de um problema na luz, tomou um choque. Mas daí quando saíram gritando por socorro, alguém disse: “Entrou alguém na escola cortando a professora” — relembra.
Depois disso, a correria foi intensa. Seu Ailton saiu da garagem de casa e começou a prestar auxílio às professoras e crianças que saiam pela rua em busca de ajuda. Como a filha também atuava na escola, mas no período da tarde, foi no pátio do imóvel o primeiro lugar em que elas pensaram na hora de buscar apoio.
Há alguns metros dali, Ezequiel Vargas Pimentel, de 36 anos, seguia a rotina de sempre. Dono de uma oficina de motos, ele já se acostumou com o barulho constante de ferramentas. Mas, foram os gritos de socorro que geraram o alerta de que algo estava errado:
— Comecei a escutar uns barulhos de ferro, umas batidas. Nisso eu escutei a grade e fiquei meio assim, foi quando comecei a vir mais para a porta. Foi aí que ouvi alguns pedidos de socorro e me alertei que alguma coisa não estava certa.
Ele, então, deixou o trabalho de lado e correu para a porta da creche, onde viu a movimentação dos funcionários que suplicavam por ajuda. Segundo Zeki, como é conhecido na região, o primeiro pensamento que veio à cabeça no momento foi a situação das crianças. Por conta disso, ele não hesitou: entrou na creche.
Ele andou pelo corredor que leva para as salas de aula. Esquivo, olhava de canto de olho para tentar identificar o local onde o possível autor estaria e a arma que usava.
— Nisso, eu dei uma espiada e vi uma professora. Como ela me conhecia, ela me olhou e disse: “Ele está ali naquela sala, tranca ele no banheiro”. Foi aí que entrei — conta.
O empresário relembra que, ao abrir a sala, já encontrou as vítimas no chão. Porém, o que chamou sua atenção foi o jovem parado em um dos cantos.
— Tinha um rapaz na sala, só que eu não sabia quem era ele. Em vez de vir contra mim, para tentar reagir, ele deu as costas e foi na direção contrária. Eu pensei que era um professor e estava tentando trancar [o autor] ali dentro do banheiro. Nisso eu vi que algumas crianças ainda estavam com vida. Peguei dois [bebês] pelos braços e saí para fora — relembra.
Ao sair da escola, Zeki deixou uma das crianças com uma das profissionais e foi com a outra até o hospital da cidade, que fica a cerca de 650 metros do local, em busca de atendimento. Tudo isso não durou mais do que 15 minutos.
— Quando cheguei no hospital, pedi socorro. Falei para o pessoal: “Chama bombeiro, chama polícia, que o cara tá armado e fez alguma vítima, não sei se ta fazendo mais”. Quando voltei para a escola, ele já tinha se rendido. Daí, eu até fiquei meio em choque quando vi ele na maca. Apontei e disse: “É esse cara? Pô entrei na sala com ele!”.
“É muito difícil agora falar o que aconteceu. Ninguém esperou né? Foi um choque, porque uma cidadezinha assim, de Saudades, que todo mundo conhece todos, acontecer isso. Bem complicado”
Elemar
Na esquina de uma das principais vias da cidade, seu Elemar Sehn acompanha o fluxo da borracharia que tem há anos no Centro de Saudades sentado em um banco improvisado. Com um sorriso acolhedor, recebe os clientes que buscam, diariamente, o local para fazer a troca dos pneus. Porém, um tópico faz com que o sorriso dê lugar aos olhos marejados e as lembranças que nem mesmo os últimos 365 dias foram capazes de apagar.
A convivência com a neta Sarah Luiza Mahle Sehn era sempre motivo de alegria na casa do borracheiro. No almoço, a pequena de apenas um ano e sete meses era a primeira a sentar na mesa para aproveitar a refeição.
— Quando o prato dela estava pronto, ela logo sentava para comer. Quando ela estava pronta, servida, ela queria lavar as mãos, a boca e dizia: “O vovô tem que ir junto”. Íamos ao banheiro, ela pisava em cima do vaso, trepava na bancada e olhava no espelho. Depois, eu lavava as mãos dela, secava e ia para fora. Lá, ela mostrava para a mãe e o pai dela. De tarde, quando ela acordava, chamava: “Vovô está na hora de levantar”. Bem queridinha — recorda.
Em 4 de maio, seu Elemar seguia a mesma rotina de sempre: abriu a borracharia cedo, junto com os filhos, e começou a atender a clientela. Foi por meio de uma mensagem de texto que o avô, tão apaixonado pela neta, soube do ataque que mudou a vida da família para sempre.
— Meu filho viu uma mensagem e disse: “Mataram uma professora na creche, na Aquarela, mataram criança também”. Aí eu falei para uma senhora que estava ali: “Pior que eu tenho uma neta junto lá também”. Essa senhora, que eu nem sei quem era, falou “ui”. Ali eu parei na hora — conta.
Minutos depois, foi a vez do filho, pai de Sarah, dar a notícia:
— Pai, aconteceu uma tragédia.
— Não que a Sarah estava junto?
— “Tá junto. Tá morta”.
— Daí começou o desespero — disse seu Elemar, com lágrimas nos olhos e a voz embargada.
Sarah era a mais nova das crianças que morreram na chacina de Saudades. Segundo o avô, ela estudava há pouco mais de um mês na creche. Os dois colegas dela, Murilo Massing, de um ano e nove meses, e Anna Bela Fernandes de Barros, de um ano e oito meses, que dormiam na mesma sala que ela no momento da tragédia, também não resistiram. Mirla Amanda Renner Costa, de 20 anos, que atuava como agente educacional, e Keli Adriane Aniecevski, de 30 anos, que era professora na unidade, foram as últimas vítimas.
— É muito difícil agora falar o que aconteceu. Ninguém esperou né? Foi um choque, porque uma cidadezinha assim, de Saudades, que todo mundo conhece todos, acontecer isso. Bem complicado — finaliza Elemar.
Jonas Alexandre Kaiser
agente da Polícia Civil e responsável pela delegacia em Saudades à época
“É difícil esquecer da imagem. Foi e é um luto eterno, tanto para a sociedade, como para os familiares. Isso é uma coisa que jamais vão esquecer”
Atuando há quatro anos no Corpo de Bombeiros Militar, o soldado Rafael Blasechi nunca imaginou que iria trabalhar em uma ocorrência, descrita por ele, “com requintes de crueldade”. Ele trabalhava no quartel de Saudades naquela manhã, quando soube da invasão na creche.
— Nós fomos acionados via Cobom [Central de ocorrências dos Bombeiros Militares], que é a nossa central, que fica em Chapecó. Quando a guarnição já estava indo até o local, algumas pessoas também foram até o quartel para chamar a gente. Chegamos na creche e havia todo o caos instaurado — conta.
O militar explica que, em uma sala, encontrou duas crianças e uma professora no chão, já mortas. Em outro local, estava a segunda profissional, que chegou a receber atendimento, mas também não resistiu aos ferimentos.
Já o autor dos golpes, segundo o soldado, foi encontrado caído no chão, com um corte no pescoço.
— Ele se demonstrava bastante conturbado. Proferiu algumas palavras para a guarnição, tanto para os bombeiros quanto para a polícia e os populares que se encontravam ali dentro. Ele questionava sobre a questão do número de vítimas e fazia menção à faca dele, que estava próxima — salienta.
O agente da Polícia Civil e responsável pela delegacia em Saudades, Jonas Alexandre Kaiser, também foi uma das primeiras pessoas a chegar no local. Para ele, a cena era chocante.
— É difícil esquecer da imagem. Foi e é um luto eterno, tanto para a sociedade, como para os familiares. Isso é uma coisa que jamais vão esquecer — reforça.
O autor recebeu atendimento e, após o crime, foi encaminhado ao Hospital de Pinhalzinho, cidade que fica na região. Após atingir as vítimas, ele golpeou o próprio corpo com a adaga, por isso ficou oito dias internado e, depois, foi levado ao Presídio Regional de Chapecó.
De acordo com Kaiser, o jovem não tinha histórico criminal. Colegas de trabalho informaram, em depoimento, que ele era um bom funcionário e que nunca causou problemas. O ataque à creche, inclusive, trouxe choque e dor aos pais dele, que jamais imaginavam que ele poderia cometer o crime.
Ao fim das investigações, a polícia chegou à conclusão de que a motivação foi a idolatria do jovem por crimes violentos, principalmente aqueles que ocorriam em ambientes escolares. O inquérito também apontou que ele desejava a fama “no meio que estava inserido”.
— Depois do flagrante, a investigação evoluiu para saber, principalmente, a motivação desse atentado. Ali foi descoberto que ele fazia consultas em deep web [a área da Internet que fica escondida], em sites sobre atentados que ocorreram no mundo, fazendo sempre uma reverência a esses atentados, como se os heróis que existem são esses, que marcam o nome na história por ter matado inocentes — pontua o delegado Lucas Almeida, atual titular da delegacia de Saudades.
A brutalidade do ataque também assusta ao comparar os índices de criminalidade de Saudades. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP) de Santa Catarina, entre 2017 e abril de 2021, a cidade tinha registrado apenas um homicídio.
— É uma cidade muito pacífica, tem números reduzidíssimos de crime de agressão contra terceiros. Isso demonstra que foi atípico [o massacre]. Foi algo que não representa a população da cidade — comenta o delegado.
Um ano depois, pouca coisa mudou na cidade. A fachada da escola passou do amarelo e vermelho para tons de verde e laranja. A sala onde as vítimas foram encontradas deu lugar a uma área de recreação. Mas, os sentimentos nos corredores continuam de medo e desconfiança.
Os professores e funcionários da escola, por exemplo, preferem não conversar sobre assunto, assim como pais e parentes das vítimas. Na cidade, ao citar o caso, é impossível encontrar um morador que não saiba quem eram os bebês ou as professoras.
— Os pais das crianças praticamente são meus amigos, conhecidos de infância. Eu nasci aqui em Saudades, então esses pais são da minha geração. No ocorrido, meu filho tinha um ano e um mês. Então, de certa forma, parecia que era comigo mesmo. O pai de uma das professoras, inclusive, foi meu colega de trabalho — conta o atual prefeito de Saudades, Maciel Schneider (PSL).
Por conta disso, nas ruas, o sentimento ainda é de luto e de negação pelo o que aconteceu. De acordo com a psicóloga e professora da Furb Catarina Gewerh, este é um cenário esperado, dada a proporção da tragédia.
— O que aconteceu em Saudades tem um impacto na vida comunitária, principalmente por se tratar de uma cidade pequena. Lidar com a dor de um familiar que perdeu uma criança, viver essa dor de novo, é muito duro. Por isso, as pessoas evitam falar sobre. Elas não querem reviver essa dor de novo — pontua.
Outro ponto levantado pela psicóloga é a forma como as pessoas vivem o luto. Isto porque cada pessoa processa a informação da perda de uma forma diferente, o que afeta no comportamento. Mas é necessário que cada um sinta essa perda, principalmente para enfrentar de forma mais saudável essa fase.
Catarina reforça, ainda, a importância de oferecer suporte psicológico necessário para as famílias, a fim de mostrar que aquele é um fato isolado.
— Não basta agir apenas na unidade, com os pais e os familiares. A cidade como um todo precisa desse suporte para mostrar que Saudades não é aquela tragédia e que tem valores positivos. Claro que essa elevação respeitaria a memória das funcionárias, mas também ajudaria a cidade a não ficar presa em um evento, o que aumenta a ansiedade dos moradores — enfatiza.
De acordo com o prefeito da cidade, Maciel Schneider, desde o dia da tragédia, moradores e familiares recebem apoio psicológico. O governo do Estado de Santa Catarina, inclusive, enviou à cidade 24 profissionais para ajudar a comunidade nos dias que sucederam o crime.
Além disso, na semana seguinte à chacina, uma força-tarefa foi feita para modificar a estrutura da creche. Além da nova coloração, a sala onde ocorreram as mortes foi derrubada e um espaço de lazer foi instalado. A prefeitura também contratou, por meio de licitação, equipes de vigilância que atuam em todas as unidades de ensino do município. Com isso, apenas pessoas autorizadas têm permissão de adentrar as dependências. Uma situação impensável anos atrás.
— Se antes do ocorrido fôssemos querer instalar nas escolas porteiro eletrônico, vigia, certamente seríamos condenados por isso, por ser uma cidade muito tranquila. Nunca que iríamos imaginar uma maldade dessa proporção — diz o prefeito.
A ação que apura a conduta do autor tramita no Fórum da Comarca de Pinhalzinho, porém, no momento, está suspensa. De acordo com o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), o processo aguarda o julgamento de um recurso, apresentado pela defesa, sobre a sanidade mental do réu.
Conforme o TJ, três laudos— elaborados pela defesa, Instituto Geral de Perícias (IGP) e Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) — dão parecer diferente a respeito da saúde do jovem. Eles são importantes para definir o tipo de pena que ele irá receber pelo crime. Por exemplo, se ele for considerado incapaz na época das mortes, ele pode ser “absolvido” no processo e, com isso, ser submetido a tratamento em um hospital psiquiátrico.
Em fevereiro, o juiz Caio Lemgruber Taborda chegou a determinar que a decisão fosse tomada pelo Tribunal do Júri. Mas foi justamente esse fator que fez a defesa entrar com um recurso no TJ.
O Diário Catarinense tentou contato com o advogado de defesa do autor, Demetryus Eugenio Grapiglia, que disse que não daria entrevistas por telefone. No vídeo mais recente dele, publicado nas redes sociais, afirmou que o júri não tem condições de discorrer sobre questões técnicas e que a insanidade do réu deve ser “esclarecida em uma nova perícia”.
Ainda não há prazo de quando o novo recurso será analisado pelo TJ.
São 365 dias de saudades. 365 dias que a história da cidade mudou completamente em minutos. 365 dias de uma cena que, até hoje, abala e causa dor naqueles que ficaram.
— No momento que ficamos sabendo que tinham crianças inocentes no meio, veio tudo ao chão. Acredito que após o incidente, por bastante tempo, a cidade ficou muito abalada até conseguir juntar os cacos de novo, reerguer a estrutura — desabafa o radialista Jardel de Andrade, um dos primeiros a saber sobre o caso.
Aos poucos, os que ficaram buscam forças em meio às cicatrizes de uma tragédia que ninguém quer reviver em Santa Catarina.
— Já faz mais tempo, né? Mas nós sempre lembramos dela, cada dia. A vizinhança conhecia, viam a gente brincar com ela. Muitas coisas aconteceram e a gente não lembra de tudo. Mas a saudade a gente nunca esquece, né? — finaliza seu Elemar, avô da pequena Sarah.
– expediente –
reportagem
Luana Amorim
imagens
Tiago Ghizoni
design
Ciliane Pereira
edição
Raphaela Suzin
Everton Siemann