Caminhos de

Fritz Müller

Naturalista que completa bicentenário em 2022 percorreu centenas de quilômetros em SC em busca de fatos que consolidaram uma revolução da ciência. Após quatro anos de pesquisa, reportagem refaz algumas das expedições nas terras catarinenses e mostra o legado de Fritz para a humanidade

Caminhos

de

Fritz Müller

Naturalista que completa bicentenário em 2022 percorreu centenas de quilômetros em SC em busca de fatos que consolidaram uma revolução da ciência. Após quatro anos de pesquisa, reportagem refaz algumas das expedições nas terras catarinenses e mostra o legado de Fritz para a humanidade
Estátua de Fritz Müller foi inaugurada em 1929, 11 anos antes do monumento a Hermann Blumenau

Foto: Arquivo Histórico de Blumenau

Parecia domingo em Blumenau. Desde a alvorada um desfile de chapéus, vestidos e paletós tomou as ruas. As crianças exibiam as melhores roupas, laços nos cabelos das meninas, gravatas nos meninos. Até a manhã azulada e seca, típica de outono, lembrava um fim de semana a ser aproveitado sob o sol. Mas aquele 20 de maio de 1929 era segunda-feira, dia de trabalho excepcionalmente reservado a um compromisso social.

No entorno da mais nova praça da cidade, uma multidão reuniu-se para ouvir autoridades ao pé de um monumento encoberto com a bandeira do Brasil. Era a primeira estátua de grande porte a celebrar uma personalidade blumenauense. Honraria a que o fundador da colônia, Hermann Blumenau, só teria direito 11 anos mais tarde, em 1940. Era também o primeiro monumento em praça pública a um cientista no país — coisa rara até hoje.

Filhas, netos e sobrinhos do homenageado acompanhavam a solenidade. Inclusive o prefeito em exercício, Otto Hennings, tinha laços de parentesco com ele. Muitos entre as centenas de pessoas presentes à cerimônia haviam conhecido o ilustre cidadão, morto 32 anos antes. Por isso, quando a filha do prefeito descerrou a bandeira nacional e apresentou a imagem em bronze aos olhos do público, houve inquietação.

No alto do pedestal, com a mão no queixo e ar reflexivo, estava sentado um alemão corpulento, barba cuidadosamente desenhada, usando uma casaca à moda europeia, calça comprida e botinas. Aquele não era o Fritz Müller que a comunidade tinha na memória e o discurso do diretor do Museu Nacional, Edgar Roquette-Pinto, tratou de reforçar a discrepância:

— Digamos hoje a verdade, tal qual ele queria! Fritz Müller andava de camisa, bolsa de couro a tiracolo, pés descalços, a mão direita apoiada num cajado, o chapéu no alto da cabeça. Era o uniforme de sábio e operário, as duas coisas que sempre quis ser na vida.

As fotografias do naturalista, que eram raras no início do século passado, quando o escultor francês Albert Freyhoffer produziu a obra de arte, combinam com a descrição de Roquette-Pinto. Fritz era um homem magro, de barba espigada e que circulava pela colônia em vestes surradas de agricultor. Caminhava com o apoio de um cajado, e caminhava muito. Mas de pés no chão. Só usava botas quando as circunstâncias obrigavam.
Estátua de Fritz Müller foi inaugurada em 1929, 11 anos antes do monumento a Hermann Blumenau

Foto: Arquivo Histórico de Blumenau

Parecia domingo em Blumenau. Desde a alvorada um desfile de chapéus, vestidos e paletós tomou as ruas. As crianças exibiam as melhores roupas, laços nos cabelos das meninas, gravatas nos meninos. Até a manhã azulada e seca, típica de outono, lembrava um fim de semana a ser aproveitado sob o sol. Mas aquele 20 de maio de 1929 era segunda-feira, dia de trabalho excepcionalmente reservado a um compromisso social.

No entorno da mais nova praça da cidade, uma multidão reuniu-se para ouvir autoridades ao pé de um monumento encoberto com a bandeira do Brasil. Era a primeira estátua de grande porte a celebrar uma personalidade blumenauense. Honraria a que o fundador da colônia, Hermann Blumenau, só teria direito 11 anos mais tarde, em 1940. Era também o primeiro monumento em praça pública a um cientista no país — coisa rara até hoje.

Filhas, netos e sobrinhos do homenageado acompanhavam a solenidade. Inclusive o prefeito em exercício, Otto Hennings, tinha laços de parentesco com ele. Muitos entre as centenas de pessoas presentes à cerimônia haviam conhecido o ilustre cidadão, morto 32 anos antes. Por isso, quando a filha do prefeito descerrou a bandeira nacional e apresentou a imagem em bronze aos olhos do público, houve inquietação.

No alto do pedestal, com a mão no queixo e ar reflexivo, estava sentado um alemão corpulento, barba cuidadosamente desenhada, usando uma casaca à moda europeia, calça comprida e botinas. Aquele não era o Fritz Müller que a comunidade tinha na memória e o discurso do diretor do Museu Nacional, Edgar Roquette-Pinto, tratou de reforçar a discrepância:

— Digamos hoje a verdade, tal qual ele queria! Fritz Müller andava de camisa, bolsa de couro a tiracolo, pés descalços, a mão direita apoiada num cajado, o chapéu no alto da cabeça. Era o uniforme de sábio e operário, as duas coisas que sempre quis ser na vida.

As fotografias do naturalista, que eram raras no início do século passado, quando o escultor francês Albert Freyhoffer produziu a obra de arte, combinam com a descrição de Roquette-Pinto. Fritz era um homem magro, de barba espigada e que circulava pela colônia em vestes surradas de agricultor. Caminhava com o apoio de um cajado, e caminhava muito. Mas de pés no chão. Só usava botas quando as circunstâncias obrigavam.

Fritz Müller andava sempre descalço e com um cajado

Foto: Arquivo Histórico de Blumenau

Catarinense como poucos

Descalço, Fritz conheceu como poucos a faixa litorânea de Santa Catarina, exceto o Sul. E desbravou o interior até a subida da Serra e o Planalto. As plantas e animais que observou nessas expedições tornaram-se matéria-prima de pesquisas publicadas em revistas científicas do mundo todo. Sendo 22 delas na prestigiada inglesa Nature, e de conversas por correio com dezenas de naturalistas espalhados pelo globo.

O mais célebre dos correspondentes, o britânico Charles Darwin, apoiou-se em descobertas feitas em Santa Catarina para consolidar, perante a comunidade científica europeia, a teoria da evolução das espécies por meio da seleção natural. Fritz pôs o Brasil no mapa de uma das maiores revoluções da ciência na história. Além de intelectual, foi colono, médico, professor de crianças, pesquisador agrícola, juiz de paz, militante político e até prefeito de Blumenau. Viveu 34 anos no Vale do Itajaí e 11 em Desterro, hoje Florianópolis. Ele e a esposa Karoline geraram nove filhas e um menino — este morreu logo após o parto. Descendentes vivem na região até hoje.

Esse complexo personagem catarinense completa o bicentenário de nascimento no dia 31 de março. Sua vida e obra ganham evidência outra vez, mas com a vantagem de que, por meio de documentos, livros e trabalhos acadêmicos, sabe-se muito mais sobre ele agora do que em 1929, quando a estátua da Rua São Paulo, em Blumenau, foi inaugurada.

Auxiliado por pesquisadores, além de mapas e relatos do século 19, o Jornal de Santa Catarina reproduziu algumas das mais incríveis expedições do naturalista. Os relatos a seguir perseguem as marcas deixadas por ele no território e na história de Santa Catarina.

Fritz Müller andava sempre descalço e com um cajado

Foto: Arquivo Histórico de Blumenau

Catarinense como poucos

Descalço, Fritz conheceu como poucos a faixa litorânea de Santa Catarina, exceto o Sul. E desbravou o interior até a subida da Serra e o Planalto. As plantas e animais que observou nessas expedições tornaram-se matéria-prima de pesquisas publicadas em revistas científicas do mundo todo. Sendo 22 delas na prestigiada inglesa Nature, e de conversas por correio com dezenas de naturalistas espalhados pelo globo.

O mais célebre dos correspondentes, o britânico Charles Darwin, apoiou-se em descobertas feitas em Santa Catarina para consolidar, perante a comunidade científica europeia, a teoria da evolução das espécies por meio da seleção natural. Fritz pôs o Brasil no mapa de uma das maiores revoluções da ciência na história. Além de intelectual, foi colono, médico, professor de crianças, pesquisador agrícola, juiz de paz, militante político e até prefeito de Blumenau. Viveu 34 anos no Vale do Itajaí e 11 em Desterro, hoje Florianópolis. Ele e a esposa Karoline geraram nove filhas e um menino — este morreu logo após o parto. Descendentes vivem na região até hoje.

Esse complexo personagem catarinense completa o bicentenário de nascimento no dia 31 de março. Sua vida e obra ganham evidência outra vez, mas com a vantagem de que, por meio de documentos, livros e trabalhos acadêmicos, sabe-se muito mais sobre ele agora do que em 1929, quando a estátua da Rua São Paulo, em Blumenau, foi inaugurada.

Auxiliado por pesquisadores, além de mapas e relatos do século 19, o Jornal de Santa Catarina reproduziu algumas das mais incríveis expedições do naturalista. Os relatos a seguir perseguem as marcas deixadas por ele no território e na história de Santa Catarina.

Quando Fritz e família passaram um mês na cidade, São Francisco do Sul já tinha algumas das casas do Centro Histórico e a velha igreja

Foto: Luiz Carlos Souza, NSC TV

A chegada em Santa Catarina

Johann Friedrich Theodor Müller nasceu em 31 de março de 1822 na vila prussiana de Windischholzhausen, hoje distrito de Erfurt, Alemanha. Filho de um pastor luterano apaixonado pela
natureza, cresceu entre ensinamentos cristãos e excursões à mata para observar e coletar plantas.
O avô materno, Johann Trommsdorff, é considerado o pai da ciência farmacêutica na Alemanha. Na farmácia dele, em Erfurt, Fritz conviveu com todo tipo de homens interessados no que hoje chamamos de ciências naturais. Lá conheceu Hermann Blumenau, por exemplo.

Depois de experimentar brevemente a farmácia como profissão, decidiu cursar Filosofia em Berlim, onde aprendeu a ser naturalista. Foi neste período, aos 24 anos de idade, que se tornaram irreconciliáveis os conflitos internos entre fé e razão. Após um estágio como professor escolar, decide estudar Medicina em Greifswald, à beira do Báltico.
Ser médico, para Fritz, significava conseguir trabalho em um navio rumo aos trópicos. Inspirado pelas viagens de famosos naturalistas da época, como Alexander von Humboldt e Charles Darwin, ele queria pesquisar plantas e animais exóticos longe da influência religiosa prussiana.

Porém, o ateísmo tornou-se convicção política tão profunda que ele teve de rever os planos outra vez. Em 1849, recusou-se a participar da cerimônia de formatura que incluía um juramento a Deus. No ano anterior, envolvera-se na frustrada revolução que sacudiu a Europa. Ficou sem diploma, sem carreira profissional e afastou-se da família.

Emigrar tornou-se opção mais do que atraente para alguém isolado. Em 1852, acompanhado da esposa, Karoline Töllner, da filha Anna ainda bebê e do irmão August, Fritz Müller embarcou para o Brasil. Ele tinha 30 anos de idade. Foram dois meses de viagem até São Francisco do Sul, onde aportaram em julho.

A chegada em SC

Quando Fritz e família passaram um mês na cidade, São Francisco do Sul já tinha algumas das casas do Centro Histórico e a velha igreja

Foto: Luiz Carlos Souza, NSC TV

Johann Friedrich Theodor Müller nasceu em 31 de março de 1822 na vila prussiana de Windischholzhausen, hoje distrito de Erfurt, Alemanha. Filho de um pastor luterano apaixonado pela
natureza, cresceu entre ensinamentos cristãos e excursões à mata para observar e coletar plantas.
O avô materno, Johann Trommsdorff, é considerado o pai da ciência farmacêutica na Alemanha. Na farmácia dele, em Erfurt, Fritz conviveu com todo tipo de homens interessados no que hoje chamamos de ciências naturais. Lá conheceu Hermann Blumenau, por exemplo.

Depois de experimentar brevemente a farmácia como profissão, decidiu cursar Filosofia em Berlim, onde aprendeu a ser naturalista. Foi neste período, aos 24 anos de idade, que se tornaram irreconciliáveis os conflitos internos entre fé e razão. Após um estágio como professor escolar, decide estudar Medicina em Greifswald, à beira do Báltico.
Ser médico, para Fritz, significava conseguir trabalho em um navio rumo aos trópicos. Inspirado pelas viagens de famosos naturalistas da época, como Alexander von Humboldt e Charles Darwin, ele queria pesquisar plantas e animais exóticos longe da influência religiosa prussiana.

Porém, o ateísmo tornou-se convicção política tão profunda que ele teve de rever os planos outra vez. Em 1849, recusou-se a participar da cerimônia de formatura que incluía um juramento a Deus. No ano anterior, envolvera-se na frustrada revolução que sacudiu a Europa. Ficou sem diploma, sem carreira profissional e afastou-se da família.

Emigrar tornou-se opção mais do que atraente para alguém isolado. Em 1852, acompanhado da esposa, Karoline Töllner, da filha Anna ainda bebê e do irmão August, Fritz Müller embarcou para o Brasil. Ele tinha 30 anos de idade. Foram dois meses de viagem até São Francisco do Sul, onde aportaram em julho.

Os caminhos de Fritz Müller

Naturalista percorreu centenas de quilômetros do território catarinense a pé, quase sempre descalço, pesquisando fauna e flora. Confira no mapa abaixo os feitos dele nas cidades por onde passou:

*Clique nos pontos para saber o que ele fez em cada local

Os caminhos de Fritz Müller

Naturalista percorreu centenas de quilômetros do território catarinense a pé, quase sempre descalço, pesquisando fauna e flora. Confira no mapa abaixo os feitos dele nas cidades por onde passou:

*Clique nos pontos para saber o que ele fez em cada local

Conforme a historiadora Andréa Oliveira, a São Chico da época já tinha algumas das casas existentes no Centro Histórico e a velha igreja. O porto era a principal porta de entrada dos imigrantes europeus em Santa Catarina. Ao chegar, os irmãos ouviram relatos desabonadores sobre a colônia onde planejavam viver. Por isso, a família permaneceu por um mês em São Francisco enquanto August, o irmão mais moço, inspecionava as terras em Blumenau. Durante a estada na cidade, o naturalista caminhou até o atual território de Joinville para conhecer a então colônia Dona Francisca. Mas não gostou das áreas pantanosas e do excesso de umidade.

Confirmado o destino final, os Müller chegaram a Blumenau em agosto de 1852, encerrando a mais longa viagem de suas vidas, e compraram terras no início do atual Distrito do Garcia. A trajetória brasileira de Fritz começaria junto à natureza sul-americana, mas não exatamente como ele havia sonhado.
A maior parte das informações biográficas disponíveis sobre Fritz Müller resistiu ao tempo graças a Alfred Möller, primo em terceiro grau e também cientista renomado na Alemanha. No início do século passado, ele publicou um livro com cinco volumes sobre o parente no Brasil.

A obra em alemão traz cartas, trabalhos científicos, desenhos e um texto biográfico. Möller visitou o primo mais velho em Blumenau entre 1890 e 1893, onde pesquisou fungos brasileiros.
Conforme a historiadora Andréa Oliveira, a São Chico da época já tinha algumas das casas existentes no Centro Histórico e a velha igreja. O porto era a principal porta de entrada dos imigrantes europeus em Santa Catarina. Ao chegar, os irmãos ouviram relatos desabonadores sobre a colônia onde planejavam viver. Por isso, a família permaneceu por um mês em São Francisco enquanto August, o irmão mais moço, inspecionava as terras em Blumenau. Durante a estada na cidade, o naturalista caminhou até o atual território de Joinville para conhecer a então colônia Dona Francisca. Mas não gostou das áreas pantanosas e do excesso de umidade.

Confirmado o destino final, os Müller chegaram a Blumenau em agosto de 1852, encerrando a mais longa viagem de suas vidas, e compraram terras no início do atual Distrito do Garcia. A trajetória brasileira de Fritz começaria junto à natureza sul-americana, mas não exatamente como ele havia sonhado.
A maior parte das informações biográficas disponíveis sobre Fritz Müller resistiu ao tempo graças a Alfred Möller, primo em terceiro grau e também cientista renomado na Alemanha. No início do século passado, ele publicou um livro com cinco volumes sobre o parente no Brasil.

A obra em alemão traz cartas, trabalhos científicos, desenhos e um texto biográfico. Möller visitou o primo mais velho em Blumenau entre 1890 e 1893, onde pesquisou fungos brasileiros.

Um intelectual de mãos calejadas

As terras dos Müller situavam-se no início da Rua Amazonas, nas imediações de onde hoje existe uma passarela que cruza o Ribeirão Garcia rumo à Alameda Rio Branco

Fotos: Evandro de Assis

As primeiras expedições de Fritz Müller à Floresta Atlântica brasileira foram no quintal de casa. Ele e o irmão August tiveram de derrubar árvores, construir as próprias cabanas, feitas de troncos e folhas de palmeira, e preparar a terra para o plantio. A colônia Blumenau havia sido fundada apenas dois anos antes.

Analisando um mapa da época, o ecólogo Lauro Bacca presume que as terras dos Müller situavam-se no início da Rua Amazonas, nas imediações de onde hoje existe uma passarela que cruza o Ribeirão Garcia rumo à Alameda Rio Branco. No curso d’água, ainda há vestígios do que o naturalista encontrou ao chegar: cotias, peixes, palmeiras, embaúbas e uma infinidade de pássaros.

— Tudo era levado às costas. Porco vivo, por exemplo, era trazido desde a sede da colônia. Era por picada, descendo barranco, atravessando córregos… Um picadão que mal dava para passar a pé — imagina Bacca. Fritz foi apresentado às assustadoras enchentes do Itajaí-Açu dois meses após a chegada. Em seguida veio um verão inclemente, mosquitos e um ataque de indígenas à colônia. Por fim, um tronco de palmeira caiu sobre a cabeça dele durante o trabalho de derrubada da mata, causando ferimentos sérios.

“Não faltaram momentos em que amaldiçoamos o Brasil”, queixou-se, por carta, à irmã Rosine.

Foram quatro anos em que o contato com a civilização deu-se apenas por meio do correio. Pesquisas, ficavam quase sempre para depois. Faltavam tempo, livros e alguém com quem compartilhar o “prazer científico”, como dizia. Toda a energia era direcionada ao trabalho braçal, algo com que o naturalista disse ter acostumado-se rapidamente.

“Meus braços eram tão finos e pouco musculosos iguais aos de todos os alemães que cresceram dentro de casa; agora consigo manejar um machado para derrubar árvores pelo dia todo”, gabou-se, em 1854.

Naquele ano, os irmãos Müller venderam as terras no Garcia e mudaram-se para a margem esquerda do Itajaí-Açu, provavelmente onde hoje está o bairro Ponta Aguda, em Blumenau. Bastava atravessar o rio de canoa para chegar à sede da colônia. O lado ruim da decisão foi derrubar a mata e construir tudo praticamente do zero outra vez.

Nesses primeiros anos, quando ainda não havia médico na colônia, Fritz era requisitado uma vez ou outra para atender um paciente. Mas nunca considerou a prática, sem diploma, uma profissão.

Ele só deixaria a lida na roça em 1856, após receber convite para lecionar Matemática no Liceu Provincial, em Desterro. Quem o indicou foi o diretor da colônia, Hermann Blumenau. Fritz titubeou sobre a mudança. Pai de três meninas àquela altura e apegado à obra colonial construída com o próprio suor, o intelectual de mãos calejadas previa dificuldades para readaptar-se à vida urbana que a capital oferecia.

As dúvidas, porém, dissipariam-se no caminho até a Ilha de Santa Catarina. A primeira longa viagem a pé pelo território da província.

As terras dos Müller situavam-se no início da Rua Amazonas, nas imediações de onde hoje existe uma passarela que cruza o Ribeirão Garcia rumo à Alameda Rio Branco

Fotos: Evandro de Assis

Um intelectual de
mãos calejadas

As primeiras expedições de Fritz Müller à Floresta Atlântica brasileira foram no quintal de casa. Ele e o irmão August tiveram de derrubar árvores, construir as próprias cabanas, feitas de troncos e folhas de palmeira, e preparar a terra para o plantio. A colônia Blumenau havia sido fundada apenas dois anos antes.

Analisando um mapa da época, o ecólogo Lauro Bacca presume que as terras dos Müller situavam-se no início da Rua Amazonas, nas imediações de onde hoje existe uma passarela que cruza o Ribeirão Garcia rumo à Alameda Rio Branco. No curso d’água, ainda há vestígios do que o naturalista encontrou ao chegar: cotias, peixes, palmeiras, embaúbas e uma infinidade de pássaros.

— Tudo era levado às costas. Porco vivo, por exemplo, era trazido desde a sede da colônia. Era por picada, descendo barranco, atravessando córregos… Um picadão que mal dava para passar a pé — imagina Bacca. Fritz foi apresentado às assustadoras enchentes do Itajaí-Açu dois meses após a chegada. Em seguida veio um verão inclemente, mosquitos e um ataque de indígenas à colônia. Por fim, um tronco de palmeira caiu sobre a cabeça dele durante o trabalho de derrubada da mata, causando ferimentos sérios.

“Não faltaram momentos em que amaldiçoamos o Brasil”, queixou-se, por carta, à irmã Rosine.

Foram quatro anos em que o contato com a civilização deu-se apenas por meio do correio. Pesquisas, ficavam quase sempre para depois. Faltavam tempo, livros e alguém com quem compartilhar o “prazer científico”, como dizia. Toda a energia era direcionada ao trabalho braçal, algo com que o naturalista disse ter acostumado-se rapidamente.

“Meus braços eram tão finos e pouco musculosos iguais aos de todos os alemães que cresceram dentro de casa; agora consigo manejar um machado para derrubar árvores pelo dia todo”, gabou-se, em 1854.

Naquele ano, os irmãos Müller venderam as terras no Garcia e mudaram-se para a margem esquerda do Itajaí-Açu, provavelmente onde hoje está o bairro Ponta Aguda, em Blumenau. Bastava atravessar o rio de canoa para chegar à sede da colônia. O lado ruim da decisão foi derrubar a mata e construir tudo praticamente do zero outra vez.

Nesses primeiros anos, quando ainda não havia médico na colônia, Fritz era requisitado uma vez ou outra para atender um paciente. Mas nunca considerou a prática, sem diploma, uma profissão.

Ele só deixaria a lida na roça em 1856, após receber convite para lecionar Matemática no Liceu Provincial, em Desterro. Quem o indicou foi o diretor da colônia, Hermann Blumenau. Fritz titubeou sobre a mudança. Pai de três meninas àquela altura e apegado à obra colonial construída com o próprio suor, o intelectual de mãos calejadas previa dificuldades para readaptar-se à vida urbana que a capital oferecia.

As dúvidas, porém, dissipariam-se no caminho até a Ilha de Santa Catarina. A primeira longa viagem a pé pelo território da província.

A travessia a pé de Blumenau a Desterro

Os 130 quilômetros que separam Blumenau da atual Florianópolis eram percorridos, em meados do século 19, de barco. Mas Fritz Müller preferiu caminhar por uma trilha em que só passavam pessoas e animais. Não era uma estrada “carroçável”, como se dizia à época.

— Ele gostava muito de caminhar porque assim observava, podia coletar à vontade, virar uma pedra, um tronco, entrar numa mata, num riacho, observar os animais e as plantas — explica o pesquisador Luiz Roberto Fontes.

O trajeto começava descendo o Vale até Itajaí. De lá, passava pela região onde hoje fica o Morro Cortado e atravessava até Balneário Camboriú. Dali em diante, a areia da praia funcionava como estrada. Nos costões, era preciso desviar a rota. Como na região do Morro do Boi.

“A chuva noturna e a umidade durante o dia tornaram a terra vermelha tremendamente escorregadia e a subida pelo caminho íngreme não era nem um pouco alentadora. Pior, porém, era a descida pela encosta sul”, relatou. Segundo o historiador Edison D’Ávilla, às margens de grandes rios, como o Camboriú e o Tijucas, era preciso pedir auxílio a pescadores e barqueiros. Toda a viagem levava cerca de três dias. Fritz encontrava hospedagem em casas à beira da estrada, geralmente em Porto Belo ou Tijucas.

A beleza e a diversidade de espécies da costa reavivaram o interesse sobre animais marinhos, que ele já havia pesquisado no Mar Báltico, na Alemanha. Antes de chegar à Ilha, a decisão de mudar-se para lá já estava praticamente tomada.

“Os ricos tesouros animais que encontrei fizeram aflorar em chamas vivas meu antigo desejo pela pesquisa da fauna marinha”, contaria anos mais tarde.

Fritz conheceu o presidente da província, João José Coutinho, e as instalações onde trabalharia como professor de adolescentes, em Desterro. Mudou-se em agosto de 1856. A família só o acompanharia no ano seguinte.

A travessia a pé de Blumenau a Desterro

Os 130 quilômetros que separam Blumenau da atual Florianópolis eram percorridos, em meados do século 19, de barco. Mas Fritz Müller preferiu caminhar por uma trilha em que só passavam pessoas e animais. Não era uma estrada “carroçável”, como se dizia à época.

— Ele gostava muito de caminhar porque assim observava, podia coletar à vontade, virar uma pedra, um tronco, entrar numa mata, num riacho, observar os animais e as plantas — explica o pesquisador Luiz Roberto Fontes.

O trajeto começava descendo o Vale até Itajaí. De lá, passava pela região onde hoje fica o Morro Cortado e atravessava até Balneário Camboriú. Dali em diante, a areia da praia funcionava como estrada. Nos costões, era preciso desviar a rota. Como na região do Morro do Boi.

“A chuva noturna e a umidade durante o dia tornaram a terra vermelha tremendamente escorregadia e a subida pelo caminho íngreme não era nem um pouco alentadora. Pior, porém, era a descida pela encosta sul”, relatou. Segundo o historiador Edison D’Ávilla, às margens de grandes rios, como o Camboriú e o Tijucas, era preciso pedir auxílio a pescadores e barqueiros. Toda a viagem levava cerca de três dias. Fritz encontrava hospedagem em casas à beira da estrada, geralmente em Porto Belo ou Tijucas.

A beleza e a diversidade de espécies da costa reavivaram o interesse sobre animais marinhos, que ele já havia pesquisado no Mar Báltico, na Alemanha. Antes de chegar à Ilha, a decisão de mudar-se para lá já estava praticamente tomada.

“Os ricos tesouros animais que encontrei fizeram aflorar em chamas vivas meu antigo desejo pela pesquisa da fauna marinha”, contaria anos mais tarde.

Fritz conheceu o presidente da província, João José Coutinho, e as instalações onde trabalharia como professor de adolescentes, em Desterro. Mudou-se em agosto de 1856. A família só o acompanharia no ano seguinte.

A entrada no circuito científico internacional

Universidade Federal de Santa Catarina mantém um espaço em homenagem ao naturalista, na Capital

Foto: Evandro de Assis

Desterro representa um marco na vida e na carreira científica de Fritz Müller. Embora a presença do naturalista na Capital seja menos conhecida e celebrada do que em Blumenau, na Ilha ele desenvolveu pesquisas que o fizeram ser chamado pelos brasileiros de “sábio” ou “doutor” e atraíram a atenção de cientistas do outro lado do Atlântico. Foram 11 anos na atual Florianópolis, entre 1856 e 1867. Durante esse período, as cartas do naturalista a pares europeus iam assinadas com: “Fritz Müller-Desterro”. Por isso, assim ele ficaria conhecido nos circuitos científicos internacionais.

De imediato, o agricultor deu lugar ao professor de Matemática. Na vida urbana da capital da província, que se desenvolvia em meados do século 19, era preciso calçar sapatos. Nos registros da Biblioteca Pública do Estado, o cartão de Fritz Müller mostra um usuário assíduo, que lia jornais principalmente.

No Liceu Provincial, escola secundária localizada na Chácara Mato-Grosso, hoje a região da Praça Getúlio Vargas, em Florianópolis, ele dava expediente como docente. Mas eram poucas horas diárias de dedicação.

— O número de alunos era pequeno. Quando começou, em torno de 14. Ele tinha bastante tempo para explorar as redondezas e aí ele se dedicou bastante ao estudo dos organismos marinhos — conta o biólogo e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mário Steindel.

A família Müller instalou-se num casebre na Praia de Fora, hoje Beira-Mar Norte. Os aterros na região dificultam a localização exata da morada, mas sabe-se que da janela era possível ver o mar batendo na areia. Para observar e coletar espécies, bastava passar a cerca de madeira. Na praia e nas pedras dos arredores, geralmente acompanhado das filhas mais velhas, ele observava medusas, caranguejos, camarões, cracas, mariscos e toda a ordem de bichos. Àquela altura, Fritz e Karoline tinham quatro meninas. Há também registros de excursões pela Ilha de Santa Catarina, como à praia do Sambaqui e à Lagoa da Conceição.

Pela correspondência que sobreviveu ao tempo, percebe-se como o naturalista ampliou contatos científicos no período em Desterro. De início, trocava cartas com o irmão Hermann Müller e o amigo Max Schulze, na Alemanha. Por meio deles e dos livros que recebia, mantinha-se minimamente atualizado sobre os avanços da ciência na Europa. Ao mesmo tempo, o conteúdo das cartas de Fritz, repletas de observações e descobertas, era repassado a revistas e associações científicas. Essas publicações deram visibilidade ao naturalista alemão que se aventurou nos confins da América do Sul e ampliaram o número de correspondentes.

Essa verdadeira rede social científica, que funcionava via correio do século 19, tinha uma figura central, no Reino Unido, em torno de quem os demais orbitavam. Fritz Müller teria o primeiro contato com ela em 1861, quando um livro chegou a Desterro e mudou a forma como olhava para os animais marinhos catarinenses. Era a edição alemã de A Origem das Espécies, de Charles Darwin.
O Liceu ocupou o prédio do antigo colégio dos padres jesuítas (representado no quadro de Eduardo Dias), que havia sido desmantelado por um surto de febre amarela, em 1854. O então presidente da província, João José Coutinho, quis estabelecer no lugar uma escola laica. Para isso, convidou para lecionar intelectuais estrangeiros que viviam em Santa Catarina, caso de Fritz Müller.

O novo modelo de ensino, que durou de 1857 a 1864, gerou reação da comunidade católica e debates acalorados nos jornais da época — dos quais o naturalista participou ativamente.

Universidade Federal de Santa Catarina mantém um espaço em homenagem ao naturalista, na Capital

Foto: Evandro de Assis

O Liceu ocupou o prédio do antigo colégio dos padres jesuítas (representado no quadro de Eduardo Dias), que havia sido desmantelado por um surto de febre amarela, em 1854. O então presidente da província, João José Coutinho, quis estabelecer no lugar uma escola laica. Para isso, convidou para lecionar intelectuais estrangeiros que viviam em Santa Catarina, caso de Fritz Müller.

O novo modelo de ensino, que durou de 1857 a 1864, gerou reação da comunidade católica e debates acalorados nos jornais da época — dos quais o naturalista participou ativamente.

A entrada no circuito científico internacional

Desterro representa um marco na vida e na carreira científica de Fritz Müller. Embora a presença do naturalista na Capital seja menos conhecida e celebrada do que em Blumenau, na Ilha ele desenvolveu pesquisas que o fizeram ser chamado pelos brasileiros de “sábio” ou “doutor” e atraíram a atenção de cientistas do outro lado do Atlântico. Foram 11 anos na atual Florianópolis, entre 1856 e 1867. Durante esse período, as cartas do naturalista a pares europeus iam assinadas com: “Fritz Müller-Desterro”. Por isso, assim ele ficaria conhecido nos circuitos científicos internacionais.

De imediato, o agricultor deu lugar ao professor de Matemática. Na vida urbana da capital da província, que se desenvolvia em meados do século 19, era preciso calçar sapatos. Nos registros da Biblioteca Pública do Estado, o cartão de Fritz Müller mostra um usuário assíduo, que lia jornais principalmente.

No Liceu Provincial, escola secundária localizada na Chácara Mato-Grosso, hoje a região da Praça Getúlio Vargas, em Florianópolis, ele dava expediente como docente. Mas eram poucas horas diárias de dedicação.

— O número de alunos era pequeno. Quando começou, em torno de 14. Ele tinha bastante tempo para explorar as redondezas e aí ele se dedicou bastante ao estudo dos organismos marinhos — conta o biólogo e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mário Steindel.

A família Müller instalou-se num casebre na Praia de Fora, hoje Beira-Mar Norte. Os aterros na região dificultam a localização exata da morada, mas sabe-se que da janela era possível ver o mar batendo na areia. Para observar e coletar espécies, bastava passar a cerca de madeira. Na praia e nas pedras dos arredores, geralmente acompanhado das filhas mais velhas, ele observava medusas, caranguejos, camarões, cracas, mariscos e toda a ordem de bichos. Àquela altura, Fritz e Karoline tinham quatro meninas. Há também registros de excursões pela Ilha de Santa Catarina, como à praia do Sambaqui e à Lagoa da Conceição.

Pela correspondência que sobreviveu ao tempo, percebe-se como o naturalista ampliou contatos científicos no período em Desterro. De início, trocava cartas com o irmão Hermann Müller e o amigo Max Schulze, na Alemanha. Por meio deles e dos livros que recebia, mantinha-se minimamente atualizado sobre os avanços da ciência na Europa. Ao mesmo tempo, o conteúdo das cartas de Fritz, repletas de observações e descobertas, era repassado a revistas e associações científicas. Essas publicações deram visibilidade ao naturalista alemão que se aventurou nos confins da América do Sul e ampliaram o número de correspondentes.

Essa verdadeira rede social científica, que funcionava via correio do século 19, tinha uma figura central, no Reino Unido, em torno de quem os demais orbitavam. Fritz Müller teria o primeiro contato com ela em 1861, quando um livro chegou a Desterro e mudou a forma como olhava para os animais marinhos catarinenses. Era a edição alemã de A Origem das Espécies, de Charles Darwin.

O homem de Darwin no Brasil

Arquivo Histórico de Blumenau guarda exemplar alemão de A Origem das Espécies que Fritz recebeu em 1861.

Foto: Evandro de Assis

Com as mãos cobertas por luvas de látex, Sueli Petry retira delicadamente de uma caixa o livro amarelado e sem capa. A edição alemã de “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, é uma das raridades relacionadas a Fritz Müller guardadas no Arquivo Histórico de Blumenau, dirigido pela historiadora.

No alto da primeira folha em branco, lê-se o nome do dono e o ano em que a cópia chegou a Santa Catarina: 1861. O naturalista leu a obra revolucionária do britânico cerca de um ano e meio após o lançamento da primeira edição, na Inglaterra. A teoria da Seleção Natural postulada por Darwin estava sob forte ataque na Europa, escandalizada com a ideia de que as formas de vida na Terra pudessem ter origens comuns e evoluíram ao longo do tempo adaptando-se aos diferentes ambientes.

“Um livro que me deu e continua me dando muito o que pensar é o de Darwin sobre a origem das espécies no reino animal e vegetal”, escreveu Fritz aos pais, em outubro daquele ano. No verão seguinte, ele aplicou o que leu em observações de crustáceos na Ilha de Santa Catarina. O resultado desses experimentos daria origem ao único livro de Fritz, intitulado Für Darwin — do alemão, para Darwin.

O biólogo e professor da UFSC Alberto Lindner recebe convites frequentes para explicar, em aulas e seminários, as descobertas do naturalista em Santa Catarina. Além de entusiasta da memória de Fritz, Lindner é descendente direto do irmão August Müller.

— O que Fritz fez foi colher indícios contundentes de que a teoria de Darwin estava correta — avalia o biólogo Alberto Lindner.

Entre as pesquisas relatadas em Für Darwin, Lindner destaca a que descreveu uma forma larval comum entre diferentes espécies de crustáceos, chamada de náuplio. Ela demonstra que espécies como camarões, caranguejos e cracas tiveram um ancestral comum. Em outro estudo, ele observou que diferentes tipos de caranguejos que vivem fora d’água haviam desenvolvido mecanismos distintos de respiração do ar (veja em detalhes nas páginas a seguir). O livro foi publicado em 1864 na Alemanha e chegou às mãos do britânico, que mandou traduzi-lo para o inglês e publicá-lo. Darwin enviou correspondência a Desterro em 1865, a primeira de uma centena de cartas trocadas pelos cientistas durante 17 anos.

— Darwin ficou muito surpreso quando tomou conhecimento da obra de Fritz Müller. Quem defendia a teoria na Europa usava só o próprio trabalho de Darwin, não trazia novidades. Fritz tinha fatos e argumentos novos — afirma o médico e escritor Cezar Zillig, que publicou parte da correspondência no livro Dear Mr. Darwin.

A intensidade da colaboração pode ser medida pelas 19 citações a pesquisas de Fritz na sexta edição de A Origem das Espécies. Também pela opinião de Francis Darwin, que começou o trabalho de organizar a correspondência do pai. Em 1887, ele escreveu: “Minha impressão é que, entre todos os amigos que nunca viu pessoalmente, Fritz Müller era aquele por quem tinha a maior consideração”. É famoso o tratamento de “Príncipe dos Observadores” que Darwin dispensou a Fritz numa carta a um amigo em comum, em 1880.

O já falecido biólogo norte-americano David West, que escreveu uma biografia do naturalista teuto-brasileiro, considerava-o o “Homem de Darwin no Brasil”.
é o número de citações a pesquisas de Fritz Müller na sexta edição de A Origem das Espécies, publicada em 1872, por Charles Darwin (foto acima).
0
é o total de citações ao naturalista de SC em obras de Darwin.
0

Pesquisadores encontram correspondências inéditas

Mais de 15 mil cartas de ou para Charles Darwin estão catalogadas no Projeto Correspondências de Darwin, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. O livro de Cezar Zillig, publicado em 1997, revelou o conteúdo de 73 dos manuscritos trocados com Fritz Müller. Vinte e cinco anos depois, pesquisadores do Instituto Histórico de Blumenau (IHB) trabalham na tradução para o português de materiais inéditos. Eles foram cedidos por Cambridge após a mediação do cônsul-honorário do Reino Unido em Santa Catarina, Michael Delaney.

Segundo a historiadora Ana Maria Moraes, Darwin costumava recortar cartas que recebia, destacando informações científicas que mais lhe interessavam. Com isso, diálogos de cunho pessoal e comentários sobre terceiros extraviaram-se. Foram necessários anos de trabalho dos pesquisadores britânicos para juntar os pedaços do quebra-cabeças. Agora, estão disponíveis para tradução 111 documentos completos, que ampliam a compreensão da amizade científica. O objetivo dos envolvidos no projeto é publicar a totalidade da correspondência disponível em português. Porém, ainda não há uma fonte de financiamento para bancar os custos do trabalho e a produção de um livro.

O homem de Darwin no Brasil

Com as mãos cobertas por luvas de látex, Sueli Petry retira delicadamente de uma caixa o livro amarelado e sem capa. A edição alemã de “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, é uma das raridades relacionadas a Fritz Müller guardadas no Arquivo Histórico de Blumenau, dirigido pela historiadora.

No alto da primeira folha em branco, lê-se o nome do dono e o ano em que a cópia chegou a Santa Catarina: 1861. O naturalista leu a obra revolucionária do britânico cerca de um ano e meio após o lançamento da primeira edição, na Inglaterra. A teoria da Seleção Natural postulada por Darwin estava sob forte ataque na Europa, escandalizada com a ideia de que as formas de vida na Terra pudessem ter origens comuns e evoluíram ao longo do tempo adaptando-se aos diferentes ambientes.

“Um livro que me deu e continua me dando muito o que pensar é o de Darwin sobre a origem das espécies no reino animal e vegetal”, escreveu Fritz aos pais, em outubro daquele ano. No verão seguinte, ele aplicou o que leu em observações de crustáceos na Ilha de Santa Catarina. O resultado desses experimentos daria origem ao único livro de Fritz, intitulado Für Darwin — do alemão, para Darwin. O biólogo e professor da UFSC Alberto Lindner recebe convites frequentes para explicar, em aulas e seminários, as descobertas do naturalista em Santa Catarina. Além de entusiasta da memória de Fritz, Lindner é descendente direto do irmão August Müller.

Arquivo Histórico de Blumenau guarda exemplar alemão de A Origem das Espécies que Fritz recebeu em 1861.

Foto: Evandro de Assis

— O que Fritz fez foi colher indícios contundentes de que a teoria de Darwin estava correta — avalia o biólogo Alberto Lindner.

Entre as pesquisas relatadas em Für Darwin, Lindner destaca a que descreveu uma forma larval comum entre diferentes espécies de crustáceos, chamada de náuplio. Ela demonstra que espécies como camarões, caranguejos e cracas tiveram um ancestral comum. Em outro estudo, ele observou que diferentes tipos de caranguejos que vivem fora d’água haviam desenvolvido mecanismos distintos de respiração do ar (veja em detalhes nas páginas a seguir). O livro foi publicado em 1864 na Alemanha e chegou às mãos do britânico, que mandou traduzi-lo para o inglês e publicá-lo. Darwin enviou correspondência a Desterro em 1865, a primeira de uma centena de cartas trocadas pelos cientistas durante 17 anos.

— Darwin ficou muito surpreso quando tomou conhecimento da obra de Fritz Müller. Quem defendia a teoria na Europa usava só o próprio trabalho de Darwin, não trazia novidades. Fritz tinha fatos e argumentos novos — afirma o médico e escritor Cezar Zillig, que publicou parte da correspondência no livro Dear Mr. Darwin.

A intensidade da colaboração pode ser medida pelas 19 citações a pesquisas de Fritz na sexta edição de A Origem das Espécies. Também pela opinião de Francis Darwin, que começou o trabalho de organizar a correspondência do pai. Em 1887, ele escreveu: “Minha impressão é que, entre todos os amigos que nunca viu pessoalmente, Fritz Müller era aquele por quem tinha a maior consideração”. É famoso o tratamento de “Príncipe dos Observadores” que Darwin dispensou a Fritz numa carta a um amigo em comum, em 1880.

O já falecido biólogo norte-americano David West, que escreveu uma biografia do naturalista teuto-brasileiro, considerava-o o “Homem de Darwin no Brasil”.

Pesquisadores encontram correspondências inéditas

Mais de 15 mil cartas de ou para Charles Darwin estão catalogadas no Projeto Correspondências de Darwin, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. O livro de Cezar Zillig, publicado em 1997, revelou o conteúdo de 73 dos manuscritos trocados com Fritz Müller. Vinte e cinco anos depois, pesquisadores do Instituto Histórico de Blumenau (IHB) trabalham na tradução para o português de materiais inéditos. Eles foram cedidos por Cambridge após a mediação do cônsul-honorário do Reino Unido em Santa Catarina, Michael Delaney.

Segundo a historiadora Ana Maria Moraes, Darwin costumava recortar cartas que recebia, destacando informações científicas que mais lhe interessavam. Com isso, diálogos de cunho pessoal e comentários sobre terceiros extraviaram-se. Foram necessários anos de trabalho dos pesquisadores britânicos para juntar os pedaços do quebra-cabeças. Agora, estão disponíveis para tradução 111 documentos completos, que ampliam a compreensão da amizade científica. O objetivo dos envolvidos no projeto é publicar a totalidade da correspondência disponível em português. Porém, ainda não há uma fonte de financiamento para bancar os custos do trabalho e a produção de um livro.
é o número de citações a pesquisas de Fritz Müller na sexta edição de A Origem das Espécies, publicada em 1872, por Charles Darwin (foto acima).
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é o total de citações ao naturalista de SC em obras de Darwin.
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Fonte: professor e biólogo Mário Steindel

Vida e história de descobertas

Vida e história de descobertas

Trilha à Serra teve pinhão e araucária

A reportagem visitou, acompanhada de pesquisadores, o Mirante da Boa Vista, ponto alcançado por Fritz Müller a pé.

Foto: Josué Pazzini Betim, NSC TV

O reconhecimento internacional de Fritz Müller como intelectual não alterou significativamente a vida que levava em Desterro. Pelo contrário, os sacolejos políticos do Brasil Império trouxeram insegurança à família. O Liceu Provincial fechou as portas no mesmo 1864 em que Für Darwin foi publicado na Alemanha. Como tinha naturalização brasileira e estabilidade no cargo, o professor de Matemática permaneceu lecionando a alunos avulsos durante três anos.

Em 1867, Fritz conseguiu que o governo da província o transferisse para a função de pesquisador agrícola. Era tudo o que precisava para começar uma série de longas excursões pelo território catarinense. Antes, a família voltou a morar em Blumenau.

— Apesar dele ter se maravilhado com o mar e com a riqueza de vida do litoral catarinense, na realidade, o que ele gostava mesmo era da floresta — analisa o ecólogo e ambientalista blumenauense Lauro Bacca.

Os Müller compraram a casa da Rua Itajaí, onde hoje funciona o Museu de Ecologia. O jardim do imóvel ainda preserva algumas das dezenas de plantas que o próprio naturalista trouxe ao local, como um conjunto de camélias.

— O grande laboratório de Fritz Müller era o jardim da casa dele — comenta o médico e escritor Cezar Zillig.

No ano seguinte, acompanhado de um sobrinho, Fritz percorreu cerca de 500 quilômetros, ida e volta, caminhando sem sapatos até a Grande Florianópolis e dali rumo à Serra. Um relato deixado por ele dá ideia da empreitada, que durou 35 dias:

“Tínhamos algumas respeitosas montanhas para vencer, entre as quais um fértil vale e um rio extenso para atravessar para finalmente sair da estrada que leva a Lages”.

Seguindo as pistas de Fritz e antigos mapas das colônias que hoje formam o município de Águas Mornas, o Jornal de Santa Catarina repetiu a excursão em novembro de 2021, acompanhado de Lauro Bacca e do presidente do Instituto Histórico de Blumenau (IHB), Marcos Schroeder. Ambos são entusiastas de uma ideia que ganhou força por ocasião do bicentenário: traçar antigos caminhos de Fritz Müller para transformá-los em atrativo turístico.

A trilha percorrida pelo naturalista coincide com a BR-282, em alguns momentos. Mas a maior parte é agora ocupada por estradinhas vicinais, áreas rurais e residenciais. Segundo o escritor e pesquisador Toni Jochem, de Águas Mornas, há trechos onde até hoje só se passa a pé. Por isso, mais de uma vez nosso comboio teve de dar meia-volta.

O ponto final da excursão de Fritz foi o Morro da Boa Vista, em Rancho Queimado, onde a Serra Catarinense descortina-se ao visitante. O clima seco, o vento e a vegetação eram completamente diferentes do Brasil que o naturalista havia conhecido até então. Ele impressionou-se com as araucárias da Serra, com o sabor do pinhão e com os campos que se modificam conforme predomina o solo pedregoso.

Com mapas do IBGE em punho, Bacca e Schroeder compararam a descrição dos campos feita em 1868 com a paisagem atual. Encontraram o Morro do Funil, no Alto Vale do Itajaí, mas duvidaram da menção feita pelo naturalista ao Morro do Baú, em Ilhota, improvável de ser avistado daquele ponto.

— O fato de sabermos que ele passou por aqui, vermos espécies que ele também observou e pesquisou, tem importância pela relevância histórica do cientista — analisou Schroeder.

Nesta mesma excursão, Fritz desceu o Rio Capivari até o atual município de São Bonifácio, o ponto mais ao Sul que visitou no Estado. Ele voltou para casa carregado de espécies vegetais, especialmente orquídeas. O relato foi publicado como artigo científico na Alemanha, em 1869.

O minhocão

Ilustração de Mário Morri

Entre os mais de 260 artigos científicos publicados por Fritz Müller em revistas brasileiras e internacionais, o mais curioso é o que descreve a lenda do Minhocão. Nas excursões que fez ao interior catarinense, o naturalista ouviu histórias sobre um animal com dezenas de metros de comprimento, encoberto por uma dura casca, que rastejaria pelos campos derrubando árvores e deixando um valo na paisagem.

O artigo traz informes de homens do campo que teriam visto a minhoca “tão grande como uma casa” e seu “focinho suíno”, a exemplo do retrato falado que o artista uruguaio Mario Morri executou recentemente, numa homenagem sugerida pelo médico e biólogo Luiz Roberto Fontes.

Fritz põe em dúvida os relatos, mas admite que as valas descritas nos pântanos só podiam ser obra de um bicho.

“As informações sobre o animal, tanto precárias quanto não confiáveis, deixam dúvida total sobre a aparência e até mesmo sobre o tamanho dele. É possível, porém, suspeitar nele um peixe anfíbio gigante. Em todo caso, vale a pena continuar a seguir o minhocão e capturá-lo se possível para um jardim zoológico”, conclui. Como se sabe, o minhocão jamais foi encontrado.

A reportagem visitou, acompanhada de pesquisadores, o Mirante da Boa Vista, ponto alcançado por Fritz Müller a pé.

Foto: Josué Pazzini Betim, NSC TV

Trilha à Serra teve pinhão e araucária

O reconhecimento internacional de Fritz Müller como intelectual não alterou significativamente a vida que levava em Desterro. Pelo contrário, os sacolejos políticos do Brasil Império trouxeram insegurança à família. O Liceu Provincial fechou as portas no mesmo 1864 em que Für Darwin foi publicado na Alemanha. Como tinha naturalização brasileira e estabilidade no cargo, o professor de Matemática permaneceu lecionando a alunos avulsos durante três anos.

Em 1867, Fritz conseguiu que o governo da província o transferisse para a função de pesquisador agrícola. Era tudo o que precisava para começar uma série de longas excursões pelo território catarinense. Antes, a família voltou a morar em Blumenau.

— Apesar dele ter se maravilhado com o mar e com a riqueza de vida do litoral catarinense, na realidade, o que ele gostava mesmo era da floresta — analisa o ecólogo e ambientalista blumenauense Lauro Bacca.

Os Müller compraram a casa da Rua Itajaí, onde hoje funciona o Museu de Ecologia. O jardim do imóvel ainda preserva algumas das dezenas de plantas que o próprio naturalista trouxe ao local, como um conjunto de camélias.

— O grande laboratório de Fritz Müller era o jardim da casa dele — comenta o médico e escritor Cezar Zillig.

No ano seguinte, acompanhado de um sobrinho, Fritz percorreu cerca de 500 quilômetros, ida e volta, caminhando sem sapatos até a Grande Florianópolis e dali rumo à Serra. Um relato deixado por ele dá ideia da empreitada, que durou 35 dias:

“Tínhamos algumas respeitosas montanhas para vencer, entre as quais um fértil vale e um rio extenso para atravessar para finalmente sair da estrada que leva a Lages”.

Seguindo as pistas de Fritz e antigos mapas das colônias que hoje formam o município de Águas Mornas, o Jornal de Santa Catarina repetiu a excursão em novembro de 2021, acompanhado de Lauro Bacca e do presidente do Instituto Histórico de Blumenau (IHB), Marcos Schroeder. Ambos são entusiastas de uma ideia que ganhou força por ocasião do bicentenário: traçar antigos caminhos de Fritz Müller para transformá-los em atrativo turístico.

A trilha percorrida pelo naturalista coincide com a BR-282, em alguns momentos. Mas a maior parte é agora ocupada por estradinhas vicinais, áreas rurais e residenciais. Segundo o escritor e pesquisador Toni Jochem, de Águas Mornas, há trechos onde até hoje só se passa a pé. Por isso, mais de uma vez nosso comboio teve de dar meia-volta.

O ponto final da excursão de Fritz foi o Morro da Boa Vista, em Rancho Queimado, onde a Serra Catarinense descortina-se ao visitante. O clima seco, o vento e a vegetação eram completamente diferentes do Brasil que o naturalista havia conhecido até então. Ele impressionou-se com as araucárias da Serra, com o sabor do pinhão e com os campos que se modificam conforme predomina o solo pedregoso.

Com mapas do IBGE em punho, Bacca e Schroeder compararam a descrição dos campos feita em 1868 com a paisagem atual. Encontraram o Morro do Funil, no Alto Vale do Itajaí, mas duvidaram da menção feita pelo naturalista ao Morro do Baú, em Ilhota, improvável de ser avistado daquele ponto.

— O fato de sabermos que ele passou por aqui, vermos espécies que ele também observou e pesquisou, tem importância pela relevância histórica do cientista — analisou Schroeder.

Ilustração de Mário Morri

Nesta mesma excursão, Fritz desceu o Rio Capivari até o atual município de São Bonifácio, o ponto mais ao Sul que visitou no Estado. Ele voltou para casa carregado de espécies vegetais, especialmente orquídeas. O relato foi publicado como artigo científico na Alemanha, em 1869.

O minhocão

Entre os mais de 260 artigos científicos publicados por Fritz Müller em revistas brasileiras e internacionais, o mais curioso é o que descreve a lenda do Minhocão. Nas excursões que fez ao interior catarinense, o naturalista ouviu histórias sobre um animal com dezenas de metros de comprimento, encoberto por uma dura casca, que rastejaria pelos campos derrubando árvores e deixando um valo na paisagem.

O artigo traz informes de homens do campo que teriam visto a minhoca “tão grande como uma casa” e seu “focinho suíno”, a exemplo do retrato falado que o artista uruguaio Mario Morri executou recentemente, numa homenagem sugerida pelo médico e biólogo Luiz Roberto Fontes.

Fritz põe em dúvida os relatos, mas admite que as valas descritas nos pântanos só podiam ser obra de um bicho.

“As informações sobre o animal, tanto precárias quanto não confiáveis, deixam dúvida total sobre a aparência e até mesmo sobre o tamanho dele. É possível, porém, suspeitar nele um peixe anfíbio gigante. Em todo caso, vale a pena continuar a seguir o minhocão e capturá-lo se possível para um jardim zoológico”, conclui. Como se sabe, o minhocão jamais foi encontrado.

Em busca do Planalto

Alto do Vale do Itajaí

Morro Pelado, em Apiúna, era ponto de referência na subida ao Alto Vale

Foto: Luiz Carlos De Souza, NSC TV

Trilha que cruzava a Serra começava em Mirim Doce

Foto: Evandro de Assis

Em 1876, o Museu Nacional do Rio de Janeiro contratou Fritz Müller como naturalista-viajante, cargo que oferecia a vida com a qual sonhava desde a Alemanha. Ele podia pesquisar a natureza catarinense à vontade, sob o compromisso de enviar trabalhos científicos periódicos à instituição. Foram 12 anos na função.

Em outubro, Fritz partiu para uma expedição rumo ao Planalto em companhia da equipe organizada pelo engenheiro e amigo Emil Odebrecht para definir o traçado da estrada Blumenau-Curitibanos, hoje a BR-470. O interesse do naturalista, entretanto, tinha a ver com fauna e flora.

— O Fritz Muller ia junto mas dava muito trabalho. Ele se perdia na mata e ficava por horas sozinho, sem comer, perdido nas suas observações — conta a diretora do Arquivo Histórico de Blumenau, Sueli Petry, citando um imigrante alemão presente à aventura.

O Santa perseguiu os vestígios dessa viagem para encontrar a trilha pioneira que conectou Blumenau aos campos por onde passavam as tropas com mercadorias rumo ao Sudeste. Desta vez, a equipe também contou com dicas de servidores da prefeitura de Taió e do pesquisador Wanderlei Salvador.

Rumo à Serra, a primeira parada é o Morro Pelado, em Apiúna, citado em relatos dos imigrantes do século 19 como ponto de referência — e é fácil entender o porquê. O Rio Itajaí-Açu contorna a montanha, formando um visual único. São 40 minutos de caminhada até o cume, de onde é possível avistar a cachoeira Santa Luzia.

Dali a excursão de 1876 continuou até Rio do Sul e de lá perseguiu o curso do Rio Taió. Depois de atravessar planícies úmidas, agora ocupadas por lavouras de arroz, descobrimos a entrada da trilha em Mirim Doce que, segundo moradores locais, continuou sendo usada por tropeiros durante décadas. Dali em diante, no entanto, a floresta tomou conta do caminho. Para prosseguir, só com a habilidade de um Fritz Müller.

“Lá em cima é um mundo muito diferente, bem mais fresco e seco. Mas a alegria é grande quando se retorna são e salvo para casa, podendo comer em uma mesa e dormir em uma cama”, comemorou.

A tranquilidade na colônia Blumenau, porém, duraria pouco tempo.
Alto do Vale do Itajaí

Morro Pelado, em Apiúna, era ponto de referência na subida ao Alto Vale

Foto: Luiz Carlos De Souza, NSC TV

Trilha que cruzava a Serra começava em Mirim Doce

Foto: Luiz Carlos De Souza, NSC TV

Em busca do Planalto

Em 1876, o Museu Nacional do Rio de Janeiro contratou Fritz Müller como naturalista-viajante, cargo que oferecia a vida com a qual sonhava desde a Alemanha. Ele podia pesquisar a natureza catarinense à vontade, sob o compromisso de enviar trabalhos científicos periódicos à instituição. Foram 12 anos na função.

Em outubro, Fritz partiu para uma expedição rumo ao Planalto em companhia da equipe organizada pelo engenheiro e amigo Emil Odebrecht para definir o traçado da estrada Blumenau-Curitibanos, hoje a BR-470. O interesse do naturalista, entretanto, tinha a ver com fauna e flora.

— O Fritz Muller ia junto mas dava muito trabalho. Ele se perdia na mata e ficava por horas sozinho, sem comer, perdido nas suas observações — conta a diretora do Arquivo Histórico de Blumenau, Sueli Petry, citando um imigrante alemão presente à aventura.

O Santa perseguiu os vestígios dessa viagem para encontrar a trilha pioneira que conectou Blumenau aos campos por onde passavam as tropas com mercadorias rumo ao Sudeste. Desta vez, a equipe também contou com dicas de servidores da prefeitura de Taió e do pesquisador Wanderlei Salvador.

Rumo à Serra, a primeira parada é o Morro Pelado, em Apiúna, citado em relatos dos imigrantes do século 19 como ponto de referência — e é fácil entender o porquê. O Rio Itajaí-Açu contorna a montanha, formando um visual único. São 40 minutos de caminhada até o cume, de onde é possível avistar a cachoeira Santa Luzia.

Dali a excursão de 1876 continuou até Rio do Sul e de lá perseguiu o curso do Rio Taió. Depois de atravessar planícies úmidas, agora ocupadas por lavouras de arroz, descobrimos a entrada da trilha em Mirim Doce que, segundo moradores locais, continuou sendo usada por tropeiros durante décadas. Dali em diante, no entanto, a floresta tomou conta do caminho. Para prosseguir, só com a habilidade de um Fritz Müller.

“Lá em cima é um mundo muito diferente, bem mais fresco e seco. Mas a alegria é grande quando se retorna são e salvo para casa, podendo comer em uma mesa e dormir em uma cama”, comemorou.

A tranquilidade na colônia Blumenau, porém, duraria pouco tempo.

Fritz foi prefeito por 27 dias

Fritz Müler Brasil

Fritz em 1891, um ano antes de tornar-se prefeito de Blumenau. Ele duraria poucas semanas no cargo.

Foto: Arquivo Histórico de Blumenau

Em 1880, o Rio Itajaí-Açu subiu até 17,1 metros em Blumenau, o maior nível de uma enchente em toda a história. A colônia foi varrida pelas águas, praticamente nenhuma propriedade ficou imune. Nem a residência da família Müller, no Vorstadt.

Uma comissão formou-se para administrar as verbas governamentais necessárias à reconstrução. Fritz tomou parte, mas logo renunciou ao posto, descontente com o mau uso dos recursos. A partir do ano seguinte, o assunto ganhou as páginas do Blumenauer Zeitung, primeiro jornal da cidade. Os debates acalorados inauguraram um período de participação política do naturalista.

Na transição do Império para a República, Fritz aliou-se aos federalistas, que eram minoria na Blumenau predominantemente republicana. Quando o governador Lauro Müller renunciou e, em 1892, um governo interventor dissolveu as intendências municipais, o naturalista foi nomeado presidente do conselho da intendência.

É por isso que a foto de Fritz Müller consta da galeria de ex-prefeitos da cidade. Foram 27 dias de mandato, oficialmente. Os motivos da renúncia até hoje não estão muito claros.

— Foi um período muito curto, o que ele fez não se percebe em termos de ações. Lendo as atas, percebe-se que ele não tinha aquela força política — comenta a diretora do Arquivo Histórico de Blumenau, Sueli Petry.

No mesmo ano, uma consolação de peso chegou pelo correio. Um enorme álbum, com as assinaturas de 115 cientistas, em comemoração ao aniversário de 70 anos. Hoje, o livro está em um arquivo na Alemanha.

Mas em 1891 a militância cobraria um preço alto. Fritz terminaria preso pelos vizinhos republicanos e ameaçado de fuzilamento por socorrer soldados federalistas feridos a bala após uma tentativa de invasão a Blumenau, durante a guerra civil que tomou o Sul do país.

“Fomos encarcerados por dias, ameaçados de fuzilamento. O motivo, provavelmente ninguém daqueles que gritavam pelo nosso sangue vai saber dizer”, queixou-se.

Libertado, Fritz amargurou-se. A decepção com a violência dos vizinhos e perdas em sequência de amigos e familiares o fizeram recolher-se. Ele continuou encontrando distração nas pesquisas, que nunca interrompeu mesmo ocupado de outras atividades.

Uma família numerosa

Fritz e Karoline tiveram ao todo 10 filhos. As sete meninas que sobreviveram à alta mortalidade infantil do século 19 tiveram o privilégio de contar com o próprio pai como professor. Ele criou um método de ensino da matemática e escreveu poemas para alfabetizar as meninas.

As historinhas têm animais brasileiros como personagens. Segundo a historiadora Ana Maria Moraes, o naturalista queria povoar a imaginação das crianças com os bichos que elas viam, e não com ursos e alces europeus. O único filho do casal, que nasceu em Desterro, em 1862, morreu logo após o parto. Em uma época de raras mulheres cientistas, era a esperança de um herdeiro intelectual.

“Não há ninguém que compreenda que nesta pequena criatura levei muito mais à sepultura do que qualquer outro pai”, lamentou.

Em 1879, nova tragédia: Rosa, a filha que demonstrava habilidades e interesse por ciência, cometeu suicídio numa viagem à Alemanha. As perdas em sequência dela, de Darwin, em 1882, e do irmão Hermann, em 1883, provocaram um longo luto.

Há descendentes de Fritz e Karoline espalhados por Santa Catarina e pelo Brasil. Neste ano, a Secretaria de Cultura de Blumenau iniciou uma campanha para identificá-los e constituir uma árvore genealógica da família. Os tataranetos interessados em colaborar devem entrar em contato pelo e-mail arquivohistorico@fcblu.com.br.
Fritz Müller morreu em 21 de maio de 1897, em Blumenau, depois de meses sofrendo com um inchaço na perna — talvez uma trombose. Nas últimas horas de vida, ele delirou falando sobre bromélias, espécie que até hoje decora o túmulo do naturalista.

Embora esteja em um cemitério luterano, a lápide não faz qualquer referência à religião, obedecendo a um desejo do homenageado.
Fritz Müler Brasil

Fritz em 1891, um ano antes de tornar-se prefeito de Blumenau. Ele duraria poucas semanas no cargo.

Foto: Arquivo Histórico de Blumenau

Fritz Müller morreu em 21 de maio de 1897, em Blumenau, depois de meses sofrendo com um inchaço na perna — talvez uma trombose. Nas últimas horas de vida, ele delirou falando sobre bromélias, espécie que até hoje decora o túmulo do naturalista.

Embora esteja em um cemitério luterano, a lápide não faz qualquer referência à religião, obedecendo a um desejo do homenageado.

Fritz foi prefeito por 27 dias

Em 1880, o Rio Itajaí-Açu subiu até
17,1 metros em Blumenau, o maior nível de uma enchente em toda a história. A colônia foi varrida pelas águas, praticamente nenhuma propriedade ficou imune. Nem a residência da família Müller, no Vorstadt.

Uma comissão formou-se para administrar as verbas governamentais necessárias à reconstrução. Fritz tomou parte, mas logo renunciou ao posto, descontente com o mau uso dos recursos. A partir do ano seguinte, o assunto ganhou as páginas do Blumenauer Zeitung, primeiro jornal da cidade. Os debates acalorados inauguraram um período de participação política do naturalista.

Na transição do Império para a República, Fritz aliou-se aos federalistas, que eram minoria na Blumenau predominantemente republicana. Quando o governador Lauro Müller renunciou e, em 1892, um governo interventor dissolveu as intendências municipais, o naturalista foi nomeado presidente do conselho da intendência.

É por isso que a foto de Fritz Müller consta da galeria de ex-prefeitos da cidade. Foram 27 dias de mandato, oficialmente. Os motivos da renúncia até hoje não estão muito claros.


— Foi um período muito curto, o que ele fez não se percebe em termos de ações. Lendo as atas, percebe-se que ele não tinha aquela força política — comenta a diretora do Arquivo Histórico de Blumenau,
Sueli Petry.

No mesmo ano, uma consolação de peso chegou pelo correio. Um enorme álbum, com as assinaturas de 115 cientistas, em comemoração ao aniversário de 70 anos. Hoje, o livro está em um arquivo na Alemanha.

Mas em 1891 a militância cobraria um preço alto. Fritz terminaria preso pelos vizinhos republicanos e ameaçado de fuzilamento por socorrer soldados federalistas feridos a bala após uma tentativa de invasão a Blumenau, durante a guerra civil que tomou o Sul do país.

“Fomos encarcerados por dias, ameaçados de fuzilamento. O motivo, provavelmente ninguém daqueles que gritavam pelo nosso sangue vai saber dizer”, queixou-se.

Libertado, Fritz amargurou-se. A decepção com a violência dos vizinhos e perdas em sequência de amigos e familiares o fizeram recolher-se. Ele continuou encontrando distração nas pesquisas, que nunca interrompeu mesmo ocupado de outras atividades.

Uma família numerosa

Fritz e Karoline tiveram ao todo 10 filhos. As sete meninas que sobreviveram à alta mortalidade infantil do século 19 tiveram o privilégio de contar com o próprio pai como professor. Ele criou um método de ensino da matemática e escreveu poemas para alfabetizar as meninas.

As historinhas têm animais brasileiros como personagens. Segundo a historiadora Ana Maria Moraes, o naturalista queria povoar a imaginação das crianças com os bichos que elas viam, e não com ursos e alces europeus. O único filho do casal, que nasceu em Desterro, em 1862, morreu logo após o parto. Em uma época de raras mulheres cientistas, era a esperança de um herdeiro intelectual.

“Não há ninguém que compreenda que nesta pequena criatura levei muito mais à sepultura do que qualquer outro pai”, lamentou.

Em 1879, nova tragédia: Rosa, a filha que demonstrava habilidades e interesse por ciência, cometeu suicídio numa viagem à Alemanha. As perdas em sequência dela, de Darwin, em 1882, e do irmão Hermann, em 1883, provocaram um longo luto.

Há descendentes de Fritz e Karoline espalhados por Santa Catarina e pelo Brasil. Neste ano, a Secretaria de Cultura de Blumenau iniciou uma campanha para identificá-los e constituir uma árvore genealógica da família. Os tataranetos interessados em colaborar devem entrar em contato pelo e-mail arquivohistorico@fcblu.com.br.

Cezar Zillig com o busto de Fritz diante do túmulo do naturalista “O cidadão mais importante que já viveu nesse Vale"

Foto: Luiz Carlos Souza, NSC TV

Legado intangível

Fritz Müller ajudou a constituir o que hoje se entende por Biologia. Estudos produzidos em Santa Catarina serviram de alicerce para o desenvolvimento das ciências naturais. Ele identificou espécies novas e revelou ao mundo a riqueza natural da costa e da Floresta Atlântica.

Na obra e nas cartas do naturalista há também registros pioneiros de preocupação ambiental. Ele surpreende-se, já no século 19, com a matança de dezenas de milhares de jacutingas no Vale do Itajaí e com o desmatamento em Desterro e no Planalto.

Participou, com a força dos braços e a capacidade de entender a natureza, do desenvolvimento de Blumenau.

Fundou, junto de outros blumenauenses, uma associação para desenvolver a agricultura. Estudou a flora da província para fomentar a produção de alimentos. Desenvolveu pesquisas com camarões que possibilitaram o posterior cultivo da espécie. Integrou sociedades que fundaram jornais e estabeleceram fundos para construir estradas. Foi juiz de paz, professor e gestor escolar.

Na Ilha, ensinou dezenas de filhos da elite catarinense. A historiadora Ana Maria Moraes cruzou dados da Biblioteca Pública do Estado com registros de matriculados no Liceu Provincial e concluiu que Fritz participou da formação de ao menos dois futuros governadores da província (Francisco Luís da Gama Rosa e Eliseu Guilherme da Silva), além de intelectuais, jornalistas e políticos que teriam influência nas décadas seguintes.

O tamanho do impacto que produziu na intelectualidade do Estado ainda está para ser melhor compreendido. Um legado intangível que, nas palavras do publicitário e editor do jornal Immigrant, Bernard Scheidemantel, “em seu modo despretensioso, contribuiu para a ampliação do horizonte intelectual de toda a colônia”.

Para saber mais

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— Nós falamos muito de Fritz Müller, nominamos ruas, temos escolas, museus, edifícios, mas lembramos dele como monumento. Um centro de pesquisa é o que nós precisamos, valorizá-lo cientificamente — defende a diretora do Arquivo Histórico, Sueli Petry.

— O Fritz Müller é a nossa joia, o cidadão mais ilustre e mais importante que já viveu aqui nesse Vale — enfatiza o médico e escritor Cezar Zillig.

Opinião que, quanto mais se conhece sobre o personagem, mais soa como fato.

Legado intangível

Cezar Zillig com o busto de Fritz diante do túmulo do naturalista “O cidadão mais importante que já viveu nesse Vale"

Foto: Luiz Carlos Souza, NSC TV

Fritz Müller ajudou a constituir o que hoje se entende por Biologia. Estudos produzidos em Santa Catarina serviram de alicerce para o desenvolvimento das ciências naturais. Ele identificou espécies novas e revelou ao mundo a riqueza natural da costa e da Floresta Atlântica.

Na obra e nas cartas do naturalista há também registros pioneiros de preocupação ambiental. Ele surpreende-se, já no século 19, com a matança de dezenas de milhares de jacutingas no Vale do Itajaí e com o desmatamento em Desterro e no Planalto.

Participou, com a força dos braços e a capacidade de entender a natureza, do desenvolvimento de Blumenau.

Fundou, junto de outros blumenauenses, uma associação para desenvolver a agricultura. Estudou a flora da província para fomentar a produção de alimentos. Desenvolveu pesquisas com camarões que possibilitaram o posterior cultivo da espécie. Integrou sociedades que fundaram jornais e estabeleceram fundos para construir estradas. Foi juiz de paz, professor e gestor escolar.

Na Ilha, ensinou dezenas de filhos da elite catarinense. A historiadora Ana Maria Moraes cruzou dados da Biblioteca Pública do Estado com registros de matriculados no Liceu Provincial e concluiu que Fritz participou da formação de ao menos dois futuros governadores da província (Francisco Luís da Gama Rosa e Eliseu Guilherme da Silva), além de intelectuais, jornalistas e políticos que teriam influência nas décadas seguintes.

O tamanho do impacto que produziu na intelectualidade do Estado ainda está para ser melhor compreendido. Um legado intangível que, nas palavras do publicitário e editor do jornal Immigrant, Bernard Scheidemantel, “em seu modo despretensioso, contribuiu para a ampliação do horizonte intelectual de toda a colônia”.

— Nós falamos muito de Fritz Müller, nominamos ruas, temos escolas, museus, edifícios, mas lembramos dele como monumento. Um centro de pesquisa é o que nós precisamos, valorizá-lo cientificamente — defende a diretora do Arquivo Histórico, Sueli Petry.

— O Fritz Müller é a nossa joia, o cidadão mais ilustre e mais importante que já viveu aqui nesse Vale — enfatiza o médico e escritor Cezar Zillig.

Opinião que, quanto mais se conhece sobre o personagem, mais soa como fato.

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PESQUISA E Reportagem

Evandro Assis

ilustração e infografia

Ben Ami Scopinho

webdesign

Tayná Gonçalves

Edição

Everton Siemann
Raquel Vieira
Carolina Marasco

Coordenação

Augusto Ittner