Primeira passagem do grupo pela América do Sul teve registro de “filhote de dragão” e início da relação do Japão com o Brasil

O primeiro lugar que os japoneses conheceram na América do Sul foi Santa Catarina, ou melhor, Sankateríni, como escreveram há 219 anos. Em um livro cheio de anotações, eles mostram as primeiras impressões que tiveram do Estado: desenharam e citaram um tal “filhote de dragão”, descreveram florestas e passarinhos de cor muito bela que cantam fazendo “kitt kiu. A chegada dos japoneses no país, em 1803, é considerada de grande importância para as duas nações e o início de uma relação entre Brasil e Japão, que foi estabelecida em 1895, com a assinatura do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação. Atualmente, o Japão é um dos principais parceiros do Brasil na Ásia. Nesta reportagem especial, você conhecerá detalhes dessa expedição vivida pelo primeiro grupo de japoneses a pisar na América do Sul e o que eles pensaram sobre Santa Catarina. 

Expedição

Expedição

O ano era 1803 e, pela primeira vez na história, quatro japoneses davam a volta ao mundo. De carona em um navio russo, que também inaugurava uma expedição pelo globo, pisaram em terras brasileiras até então desconhecidas por eles, um povo que, à época, vivia isolado do restante do mundo. Tsudayu, Sahei, Gihei e Tajyuro avistaram a Ilha de Sankateríni – Santa Catarina – e, em 22 de dezembro daquele ano, aportaram no Forte de Santana, em Florianópolis. 

 

No Estado, encontraram uma “terra quente o ano todo”, cheia de animais exóticos, como “gatos de três cores e ferozes”, “macacos de rabo comprido” e até “um filhote de dragão que poderia devorar um homem”. E isso é apenas uma parte da quase inacreditável expedição vivida pelo primeiro grupo de japoneses a pisar na América do Sul, dando início a uma relação entre Brasil e Japão, que foi estabelecida em 1895, com a assinatura do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação. 

 

A extraordinária história que teve como ponto de partida um naufrágio no mar, ao Norte do Japão, é contada até hoje nas salas de aula do país oriental através da obra de Otsuki e Shimura, “Kankai Ibun – Informações Exóticas Ouvidas na Viagem Realizada ao Redor do Mundo”. Os relatos são de três dos quatro japoneses a passarem pelos hemisférios norte e sul pela primeira vez. Um deles, Tajyuro, morreu ao chegar ao país de origem. 

O Japão tem estilo de escrita tategaki, onde as letras são colocadas na vertical, por isso, nesta reportagem, optamos por usar os títulos neste formato.

Sankateríni

Sankateríni

Numa época em que o Japão vivia isolado e o seu povo conhecia o ocidente apenas por meio de histórias, os japoneses se depararam com os “nativos de pele escura”, que andavam descalços e sem roupas, conforme descrição dos japoneses aos escritores Otsuki e Shimura.  

 

Tajyuro que andou para além do porto, percebeu que ali havia mil casas. Disse ter visto um templo com um “objeto em forma de cruz”. Observando a maneira de rezar daquele povo, constatou que se parecia com a dos japoneses.  

 

Durante os dias que permaneceram na Ilha brasileira, eles se espantaram ao ver uma criatura com escamas nos pés e espinhos no rabo, que vivia tanto na água como na mata, e que podia “devorar homens”. “Chegamos a comentar que se tratava realmente de um filhote de dragão”, disseram eles, ao tentar descrever o que parecia ser um jacaré. A beleza da fauna foi elogiada. 

Também experimentaram produtos nativos, como banana, laranja e outros alimentos subtropicais. Negociaram frutos e animais com os habitantes do Brasil, conhecido pelos viajantes também com Bracilí, e descreveram a floresta e o que habitava nela.  

 

“Os negros colocavam essas frutas num recipiente e vinham a nado até o navio para vendê-las. Nós também as compramos. Ao experimentarmos, sentimos o frescor na boca e esquecemos o calor intenso, de modo que nós as compramos e as comemos várias vezes”, disseram. 

 

Responsável pela tradução da parte do livro Kankai Ibun, a professora de linguística nascida no Japão, e que ainda criança mudou-se para o Brasil, descreve a aventura como de grande importância para as duas nações.  

A tradução do volume 12, que cita a chegada ao Brasil, está na edição de 2003 da Revista Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  

 

Além da narração, o livro com 15 volumes tem imagens que, segundo a pesquisadora, foram feitas por desenhistas na tentativa de reproduzir o relato dos quatro viajantes, como peixe com “carapaça quadrada semelhante à da tartaruga”. Conforme a tradutora do documento, é possível que se tratava de um baiacu. O manuscrito traz uma imagem de um peixe com essas características.  
 

Antes disso, porém, o manuscrito Kankai Ibun circulou clandestinamente no Japão. Segundo Paulo Baltazar da Rosa, um dos fundadores da Associação Wakamiya-maru e coordenador da Comissão de Pesquisas, ao longo dos anos foram acrescentados desenhos coloridos à mão, incluindo um mapa.  
 

Ainda, conforme Baltazar da Rosa, os japoneses permaneceram 44 dias na Ilha de Santa Catarina. Na volta pra casa, viveram fatos curiosos — foram presos e, no interrogatório, precisaram detalhar a viagem antes de serem liberados e reencontrarem suas famílias.

Desenhos em livro representam o que os japoneses viram em SC

Vila

Vila

A chegada da expedição em Santa Catarina ocorreu no dia 21 de dezembro de 1803 junto à Fortaleza Santa Cruz, Ilha de Anhatomirim, em Governador Celso Ramos. Lá, os dois navios ficaram ancorados, mas ninguém desembarcou.  

No dia seguinte, o grupo navegou com botes até um vilarejo com poucos habitantes no Forte de Santana, em Florianópolis. De lá, foram levados para a casa do governador da Capitania Santa Catarina, Joaquim Xavier Curado, afirma Rosa. 

Na vila, a economia era baseada em produtos como peixes, camarões e mandioca. Naquela época a região apresentava uma dinâmica de serviços e estrutura de cidade administrativa bem estabelecida, como explica Francisco do Vale Pereira, coordenador do Núcleo de Estudos Açorianos (NEA) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Já estavam de pé construções preservadas até hoje, como a Casa de Câmara e Cadeia e a Santa Casa da Misericórdia, hoje Imperial Hospital de Caridade.  

Naquele período, ainda havia disputa entre Portugal e Espanha, que invadiu a Ilha em 1777. Portanto, fortes foram construídos. Essa arquitetura de defesa também foi observada pelos japoneses: “Na praia, viam-se canhões para guardar a costa”.  
 

Segundo Paulo Baltazar, que pesquisa a viagem dos japoneses há cerca de 16 anos e tem detalhes da passagem do navio pela cidade, em Florianópolis o náufrago Tajyuro explorou cerca de “20 ri” para além do porto. A distância descrita pela unidade de medida japonesa no diário dos japoneses equivale a cerca de 78 quilômetros.  
 

Bem no interior, via-se uma montanha alta. Disseram-nos que é muito difícil de escalar. Os russos também se espantaram”, escreveram os japoneses. Conforme o historiador da UFSC, pela descrição é possível que eles enxergassem o Morro do Antão, no centro de Florianópolis.  
 

O que também despertou curiosidade dos japoneses foi a “imensa quantidade de árvores nos morros” e o calor que fazia na região. “Ouvimos dizer que este lugar é muito quente o ano todo e não conhece o inverno. Tomávamos banho duas ou três vezes ao dia”, narraram.

Imagens mostram outras partes da viagem dos japoneses

Japão no Período Edo

A terra do Sol nascente, como é conhecido o Japão, viveu um período de isolamento político-econômico e rígido controle interno entre 1603 e 1868, conhecido como Período Edo. Foi nessa época em que, pelos mares do mundo, os quatro viajantes tentavam voltar para a casa. Isolados, os habitantes do Japão conheciam as histórias do ocidente apenas por relatos. Com tradições milenares, o Japão é uma nação reconhecida por sua arte, estilo da escrita tategaki, onde as letras são colocadas na vertical, cultura, religião, gente e, claro, pelo seu chá.

A terra do Sol nascente, como é conhecido o Japão, viveu um período de isolamento político-econômico e rígido controle interno entre 1603 e 1868, conhecido como Período Edo. Foi nessa época em que, pelos mares do mundo, os quatro viajantes tentavam voltar para a casa. Isolados, os habitantes do Japão conheciam as histórias do ocidente apenas por relatos. Com tradições milenares, o Japão é uma nação reconhecida por sua arte, estilo da escrita tategaki, onde as letras são colocadas na vertical, cultura, religião, gente e, claro, pelo seu chá.

Naufrágio

Naufrágio

Santa Catarina foi apenas uma parte da viagem de volta ao mundo feita pelos japoneses, e começou muito antes de chegarem à ilha brasileira. Teve início em 29 de dezembro de 1793 (calendário lunissolar), quando os quatro marinheiros viajantes entraram no navio Wakamiya-maru e saíram junto com outros 12 homens do porto de Ishinomaki, ao norte do Japão, com  destino a Edo, atual Tóquio. 

 

Venderiam fardos de arroz que levavam consigo dentro da embarcação e madeira. Apanhados por um tufão, porém, ficaram cerca de cinco meses vagando pelo Pacifico Norte até chegarem a uma das ilhas Aleutas, que hoje pertencem aos Estados Unidos. Sobreviveram graças ao arroz estocado.  

Conforme a pesquisa feita pela Associação Wakamiya-maru em Santa Catarina, o grupo seguiu em Aleutas até ser encontrado e levado por soldados e caçadores russos para a Ilha Unalaska.  

Quase um ano depois, os náufragos foram encaminhados à Rússia onde viveram até que, em março de 1803 (no calendário lunissolar), o imperador Alexandre I ofereceu a parte do grupo japonês uma chance de voltar para a casa. 

 

Os russos queriam descobrir o mundo, expandir os horizontes e ampliar as relações comerciais que à época eram dominadas pelos europeus. Um dos objetivos era estabelecer relações comerciais com o Japão.  

 

Do naufrágio até o início do retorno para o Japão, três marinheiros morreram, quatro aceitaram retornar ao país e os demais permaneceram na Rússia.  

 

Zenroku, um dos náufragos já naturalizado russo, também foi embarcado para ser tradutor do embaixador da Rússia Nikolai Petrovich Rezanov. Seu destino final de desejo, no entanto, não foi o país natal, mas sim Petropavlovsk, na Rússia.  

 

Depois de aceitarem o convite do czar (imperador da época), os quatro japoneses, em 7 de agosto de 1803, embarcaram no porto de Krondstadt, próximo a São Petersburgo, para dar início à expedição. Nos meses seguintes, passaram por Copenhague e Helsingor, na Dinamarca; Falmouth, na Inglaterra; Santa Cruz, nas Ilhas Canárias da Espanha; até chegar a Santa Catarina.  

 

A bordo do navio Nadiêjda – esperança em português -, os náufragos viajaram ao lado de outra embarcação de nome Neva. Eles estavam acompanhados de médicos, astrônomos, um pintor da Academia de São Petersburgo, corpo diplomático e caçadores para as colônias.

Missão

Missão

Em um texto publicado em inglês na revista “Ship & Ocean Newsletter”, Mikio Oshima, secretário-Geral da Sociedade de Náufragos Ishinomaki Wakamiya-Maru, descreve a viagem como “uma jornada repleta de perigos e cheia de experiências estranhas”.  

 

A expedição científica também contou com a presença do pai da exploração tropical. Importante naturalista, Georg Heinrich von Langsdorff nasceu na Alemanha e se naturalizou russo, nação onde é lembrado e estudado até os dias atuais. Em Santa Catarina, ele coletou e estudou espécies. Voltou ao Brasil mais tarde, em 1813, onde continuou sua exploração no Rio de Janeiro.   

 

De acordo com Fabrício Vitorino, mestre em cultura russa, Langsdorff “ajudou a descobrir o mundo”. Especialista no tema, o pesquisador explica que a expedição do naturalista “é celebrada como uma das maiores e mais importantes missões científicas na História do Brasil”.  

 

Além disso, segundo Vitorino, criou as bases para as relações entre os dois países e desbravando rincões em toda a recém-independente Terra Brasilis. Sua importância para Rússia e Brasil é inquestionável. E, para a ciência mundial, não menos importante. É muito comum, em museus por todo mundo, topar com mostras ‘Langsdorff’ ou salas ‘Langsdorff’. 

Expediente

Expediente

Caroline Borges

Texto

Ben Ami Scopinho

Arte

Ciliane Pereira

Design e desenvolvimento

Clarissa Batistella

Edição

Raphaela Suzin

Edição

Publicado em 22/12/2022