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Mães questionam a Justiça em SC e tentam recuperar filhos antes de serem mandados para adoção. Histórias envolvem mulheres em vulnerabilidade social e casos mobilizam entidades de Direitos Humanos no Estado

RADAS

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Mães questionam a Justiça em SC e tentam recuperar filhos antes de serem mandados para adoção. Histórias envolvem mulheres em vulnerabilidade social e casos mobilizam entidades de Direitos Humanos no Estado

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Grupo de mulheres está há um mês fazendo manifestações em frente ao Fórum e pede a revisão dos processos para recuperar a guarda dos filhos. O caso ganhou repercussão nacional, mobiliza Comissão de Direitos Humanos da OAB e revela ainda que o número de destituições da família e encaminhamentos à adoção vem crescendo na cidade nos últimos anos. Autoridades negam falhas e reafirmam que retirada das crianças está pautada em provas

As mães de Blumenau

TALITA CATIE

talita.medeiros@nsc.com.br

“Estou com medo de perder meus filhos só por causa de um banho e vulnerabilidades. Estou pedindo socorro por minha família”. A frase acima está na carta enviada por uma mãe à Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Blumenau após os dois filhos pequenos serem retirados dos braços dela por determinação judicial. Yurelys Karina Sam Marquez, 31 anos, deixou a Venezuela para encontrar no Brasil uma vida digna, mas acabou perdendo a guarda das crianças, uma delas recém-nascida, após dar entrada em um hospital apenas com a certidão de nascimento da mais velha.

 
A situação registrada em novembro do ano passado acendeu um alerta no serviço social de São José, na Grande Florianópolis, onde o pequeno Pedro* nasceu. Ele precisou ir para a UTI e só recebeu alta cerca de duas semanas depois. Em questão de dias o Conselho Tutelar bateu à porta da família, na cidade vizinha de Biguaçu. Lá, em uma tarde quente de novembro, encontraram a mãe banhando o pequeno na torneira de um tanque de lavar roupas. A situação consta no processo que levou o casal a perder a guarda definitiva dos filhos. Daquele dia em diante, passaram a ser monitorados.

 
Enfrentavam dificuldade para conseguir emprego, pediam dinheiro nas ruas com as crianças junto, contavam com a ajuda da igreja e do serviço social para ter onde dormir por vezes, revela Yurelys. Ainda assim, os pequenos sempre estiveram amparados, garante a mãe, mostrando fotos com os filhos no caminho por onde passaram até chegar a Blumenau. Porém, poucos dias depois do parto, ainda no puerpério, o oficial de Justiça chegou para buscar as crianças. O casal decidiu fugir para não perder os filhos.

 
Não levou 24 horas para as crianças serem recolhidas. Às vésperas do Natal, foram encontradas com os pais no Centro Pop de Blumenau – destinado a pessoas em situação de vulnerabilidade. Lá, Yurelys e o marido, Darwin Jesus Garcia Parra, pediam ajuda para voltar à Venezuela e tentar manter os filhos com eles. A polícia chegou e deu cumprimento à ordem de apreensão dos pequenos. Cada um colocou um filho debaixo do braço e ainda tentou escapar correndo pela Via Expressa, mas acabaram capturados. Pedro, então com 17 dias de vida, ainda era amamentado no peito. Um vídeo feito pouco antes de ser levado ao abrigo mostra o garoto no seio da mãe enquanto o pai, ao fundo, trocava a fralda de Maria*, na época com pouco mais de um ano.

Estou com medo de perder meus filhos só por causa de um banho e vulnerabilidades. Estou pedindo socorro por minha família

Yurelys e Darwin,

casal da Venezuela

que tenta recuperar

os dois filhos que foram

encaminhados à adoção

Yurelys e Darwin,

casal da Venezuela

que tenta recuperar

os dois filhos que foram

encaminhados à adoção

Nove meses se passaram de lá para cá

— Tem cinco meses que não vemos as crianças e hoje disseram que não temos mais nenhum direito sobre elas, que a Justiça as mandou para adoção. Nós viemos da Venezuela, sofrendo de uma crise para resguardar o futuro das crianças e da gente, e por que isso? Eu quero meus filhos — implora a mãe.

 

A história dos venezuelanos se cruzou com a de outras 10 mães na porta do Fórum de Blumenau, onde há um mês as mulheres se revezam em vigília. Elas pedem que a Justiça reveja as decisões de retirar de forma definitiva a guarda dos pequenos e que analise a possibilidade de as crianças ficarem então aos cuidados de familiares, a chamada família extensa. O caso ganhou repercussão nacional e motivou reuniões com a Justiça e a Secretaria de Desenvolvimento Social, para averiguar como os processos tramitam. A Câmara de Vereadores chegou a marcar uma audiência pública sobre o tema, mas depois o encontro foi cancelado.

Nessa batalha o amparo às mães veio da Defensoria Pública, responsável por representar algumas delas na Justiça. O defensor Albert Silva Lima é enfático ao avaliar que apesar de a legislação dizer que colocar uma criança para adoção é atitude extrema, na cidade isso tem sido recorrente.

 

— É uma situação perceptível da priorização da adoção, mas também está exposta nos números do Sistema Nacional de Adoção. Ao passo que se vê o percentual de crianças reintegradas às famílias diminuir, verifica que o de enviado à família substituta [adoção] está aumentando muito rápido. Isso é algo que precisa ser verificado — argumenta Lima.

 

O processo que tirou a guarda de Maria e Pedro dos pais aponta repetidas vezes a questão da pobreza do casal e as constantes mudanças de endereço da família. Cita um episódio de violência doméstica e alcoolismo, ambos contestados por Yurelys. Ela não nega as dificuldades vividas, mas mostra com orgulho – enquanto se esforça para conter o choro – os esforços para reaver a guarda dos filhos. Nos últimos meses, o pai arrumou emprego de carteira assinada, alugou uma casa, montou um quarto para os pequenos. Isso não foi o bastante para reverter a decisão da Justiça. No dia da entrevista à reportagem o casal recebeu a notícia de que tinha perdido de forma definitiva a guarda e as crianças vão para a adoção.

 

Nos meses que antecederam a sentença, Darwin e a esposa puderam ver os filhos por cinco vezes. Em um dos encontros, os pais compraram quitutes para os pequenos, mas afirmaram que não puderam entregar. A mãe conta ter sido proibida de amamentar o caçula durante as visitas. A Lei Estadual 18.322/2022 considera violência obstétrica “retirar da mulher, depois do parto, o direito de ter o bebê ao seu lado no alojamento conjunto e de amamentar em livre demanda, salvo se um deles, ou ambos necessitarem de cuidados especiais”.

 

A alimentação dos filhos de Yurelyus, aliás, é alvo de outras críticas após o acolhimento. Uma gravação feita pela família mostra uma conversa entre os genitores e o serviço social quanto às refeições dos pequenos, porque uma das crianças aparentava estar com fome durante a visita. O pai diz que procurou a Justiça para questionar as condições em que as crianças estão sendo cuidadas e diz que a partir dali ficaram proibidos de ver os filhos. Ainda conforme revela o processo, em uma das visitas foi constatado que Pedro estaria com alergia e um ferimento na boca.

 

— A requerida [mãe] expressa indignação, pois menciona que o filho teria sido acolhido “por causa de um banho” e agora estaria com problemas maiores — diz no documento.

 

Após quase meio ano sem ver as crianças, enquanto pagam pensão na Justiça, o casal deposita as expectativas na a Defensoria Pública para levar o caso ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Um trecho da própria decisão judicial que tirou a guarda deles mostra os esforços da família para reverter o cenário: “A inserção no mercado formal de trabalho por parte do genitor, aliada à mudança do casal para residência com dois dormitórios, a fim de melhor acolher os filhos, apontam um movimento positivo na tentativa de superar as vulnerabilidades existentes”.

Tem cinco meses que não vemos as crianças e hoje disseram que não temos mais nenhum direito sobre elas, que a Justiça as mandou para adoção. Nós viemos da Venezuela, sofrendo de uma crise para resguardar o futuro das crianças e da gente, e por que isso? Eu quero meus filhos

Recomendação em 57% dos casos é para adoção

O processo para destituição de uma criança dos pais é cheio de etapas que envolvem, desde o princípio, o acompanhamento com assistentes sociais e psicólogas do serviço social do município. Em Blumenau, esses casos passam pelas mãos das equipes da Secretaria de Desenvolvimento Social, alvo de críticas por parte das mães que alegam haver informações inverídicas e sem provas nos relatórios. O secretário Alexandre Matias nega falhas nas análises, mas traz um número que salta aos olhos de especialistas de Direitos Humanos: em 57% dos casos que passam pela secretaria as crianças e adolescentes são encaminhados para adoção.

 
— É um índice muito grande de adoção. E na verdade a lei, o Estatuto da Criança e do Adolescente, prioriza a volta ao seio familiar. Claro que há situações, até quando a mãe não quer ficar com a criança, aí são as exceções. Mas a prioridade é voltar para a mãe — ressalta a coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da OAB Blumenau, Lenice Kelner, que está acompanhando as denúncias na cidade e informou que o caso deve ser levado à Corregedoria-Geral de Justiça.

 
Quando os pais perdem a guarda dos filhos, a lei recomenda que seja priorizada então a chamada família extensa. Na prática, significa buscar por parentes próximos com os quais a criança tenha vínculo e o adulto condições e desejo de assumir os cuidados. Isso é uma realidade em apenas 43% dos casos, segundo a Semudes.

 
— Temos um número nosso aqui da secretaria de que 43% de todos os encaminhamentos são para retornar à família natural ou extensa, que é um tio, um avô, um parente próximo. E o restante, 57%, é encaminhado para adoção, baseado nessa análise técnica feita pelas nossas assistentes sociais — aponta Alexandre Matias.

 
Carla Cristina de Melo, 29 anos, luta para que as filhas entrem ao menos nessa estatística da família extensa. Mãe de duas crianças com um e quatro anos de vida, ela perdeu a guarda dos pequenos de forma definitiva em junho deste ano após o processo na Justiça alegar o contexto de violência entre os pais – hoje separados -, a vulnerabilidade financeira e as constantes mudanças de endereço.

 
A bisavó das crianças pediu a guarda, mas não conseguiu sob as alegações de falta de vínculo e idade avançada – a senhora tem 69 anos – embora seja a responsável de outra bisneta de 12 anos e irmã das que hoje estão abrigadas na fila de adoção. Atualmente, um tio de Carla tentar a guarda das crianças para que voltem à família enquanto a mãe recorre da decisão tomada na Vara da Infância e Juventude da Comarca de Blumenau. Hoje, as filhas dela já estão na fila de adoção.

 
— Em não podendo ficar com a mãe, a prioridade deve ser a família extensa, que são os parentes próximos, mas por vezes não se faz a averiguação daquela família. Isso caracteriza uma grave violação de direito da criança, porque ela tem o direito de ser criada e educada junto a sua família natural ou extensa antes da adoção de qualquer outra providência — diz Lima.

Lenice Kelner, coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Blumenau

Temos um número nosso aqui da secretaria de que 43% de todos os encaminhamentos são para retornar à família natural ou extensa, que é um tio, um avô, um parente próximo. E o restante, 57%, é encaminhado para adoção, baseado nessa análise técnica feita pelas nossas assistentes sociais

Mobilização das

mães em Blumenau

é liderada por Carla,

que tenta recuperar

os dois filhos

Mobilização das

mães em Blumenau

é liderada por Carla,

que tenta recuperar

os dois filhos

Contestação de relatórios

Carla é uma das principais mobilizadoras do grupo de 11 mães que luta para reaver a guarda dos filhos. O cartaz que coloca diariamente em frente ao Fórum pede que a Justiça veja as provas apresentadas por ela para contestar as alegações que levaram à retirada das crianças. A sentença traz à tona os episódios em que ela apanhou do companheiro e pai das crianças, por vezes na frente dos filhos, necessidade de ter sido abrigada na Casa Eliza – espaço destinado a acolher mulheres vítimas de violência doméstica em Blumenau – por causa das agressões, as frequentes mudanças de endereço, um suposto uso de drogas e falta de estabilidade financeira.

 

– Eu me mudava de endereço para não ser encontrada pelo meu ex-marido. Elas [a equipe do serviço social] dizem que eu sou usuária de drogas, mas tenho laudo provando que não. Alegam até que meu filho nasceu com sequelas da sífilis, mas está aqui o resultado do meu exame, negativo – argumenta a mãe.

 

Hoje, vivendo de aluguel em uma quitinete, Carla diz ter condições de assumir a criação dos filhos e aponta ter emprego registrado, o que a promotoria questiona, conforme está na sentença: “Veja-se que a única mudança apresentada pela requerida foi o ingresso no mercado de trabalho – o mínimo que se espera, pois ela mesma precisa sobreviver –, o que aconteceu certa morosidade e ainda em condições dúbias, ante a possibilidade de o empregador ser, na verdade, um relacionamento amoroso, que, inclusive, motivou pedido para não depor na frente do pai das crianças”.

Pobreza e medida extrema

É apontamento comum nos casos ouvidos pela reportagem a carência financeira das mulheres que perderam a guarda dos filhos e tiveram as crianças encaminhadas à adoção. Ainda assim, o ECA é contundente no artigo 23 e diz que “a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do pátrio poder familiar”. Os próprios magistrados argumentam isso nas sentenças, mas também citam a instabilidade de emprego e renda das mães.

 
Antônia Maria de Sousa, 36 anos, diz não entender os motivos que levaram a Justiça a tirar a guarda dela de Rose*, 9, e Fernanda*, prestes a completar dois anos. Mãe solo, ela chegou ao serviço social de Blumenau no auge da pandemia da Covid-19, em 2020, quando teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e não tinha com quem deixar a filha mais velha – que na época era a única filha. O Conselho Tutelar acolheu a pequena e a levou para o abrigo enquanto a mãe, que trabalhava sem carteira assinada, estava no hospital. Lá descobriu a segunda gravidez.

 
Ao deixar a unidade de saúde, com sequelas, precisou recorrer a um advogado para reaver a primogênita e explicar o que tinha acontecido. A partir dali os olhares se lançaram sobre a família, conta Antônia. O processo que levou à destituição das crianças aponta a falta de emprego da mulher, o fato de viver em casa alugada, as constantes mudanças de endereço e a falta de parentes próximos para auxiliá-la. Destaca ainda uma instabilidade emocional de Antônia enquanto esteve dentro do abrigo Casa Eliza por falta de ter para onde ir com a filha. Nesse episódio a mulher teria se autoagredido mesmo grávida e teria batido na filha hoje com 9 anos.

 
O documento cita também as faltas escolares de Rose e “procrastinação da genitora quanto à saúde das filhas”. A mãe frisa que as aulas perdidas pela pequena foram quando a menina estava doente, o que nem sempre resultou em consulta médica, e por vezes por causa de idas ao dentista, como mostram declarações no processo.

 
— Tenho condições para cuidar das minhas filhas. Eu trabalho, sempre sustentei elas sozinhas. Eu sei que eu sou de origem humilde, mas assim, nunca faltou nada para minhas filhas — desabafa.

 
O defensor Público Albert Silva Lima se mostra preocupado quanto ao posicionamento das autoridades em relação aos fatos apresentados nos relatórios do serviço social.

 
— Não se quer saber os motivos que levaram aos fatos. Trazem-se as situações e todas as justificativas apresentadas não valem — lamenta.

 

Tenho condições para cuidar das minhas filhas. Eu trabalho, sempre sustentei elas sozinha. Eu sei que eu sou de origem humilde, mas assim, nunca faltou nada para minhas filhas

O conceito de negligência

Questionado sobre em quais casos a legislação permite a retirada da criança dos pais, o defensor público cita o artigo 1.638 do Código Civil. O texto destaca que “perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que castigar imoderadamente o filho; deixar o filho em abandono; praticar atos contrários à moral e aos bons costumes”. Mas o que ele ressalta os artigos 23 e 24 do ECA usados para embasar as decisões dos magistrados. Neles diz que as famílias podem ter os filhos destituídos em caso de descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação.

 
É aí que surge repetidamente nos processos o termo negligência. As “falhas” apontadas pela equipe técnica de acompanhamento das famílias passam a ser classificadas a partir desse conceito. Porém, tanto a Defensoria Pública de Blumenau quanto o próprio Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) concordam que o significado pode ser bastante amplo e precisa ter definições mais específicas na legislação para evitar o uso desmedido.

 
— Tem região de Santa Catarina em que 85% dos motivos de acolhimento é negligência. O que é negligência? É o que aquela profissional que atende a pessoa acha que é negligência. E não pode ser assim — pontua Lima.

 
O coordenador do Centro de Apoio Operacional de Infância e Juventude do MPSC, João Luiz de Carvalho Botega, garante que os processos que levam à destituição do poder familiar seguem trâmites previstos em lei e com direito à defesa garantido às mães. Mas também concorda que alguns aspectos precisam ser mais claros no momento da tomada de decisão.

 
— A questão da negligência é até uma discussão que tem sido feito nacionalmente porque proporcionalmente a gente ainda tem como um dos principais motivos tanto de acolhimento quanto de destituição do poder familiar a negligência, um conceito de fato amplo, que não tem definição legal. A negligência pressupõe uma ação proativa da rede de apoio e proteção e que ainda assim não conseguiu construir esse vínculo natural. E não se pode esperar muito tempo para isso, mas de deve ter todo o cuidado. A questão da negligência é uma discussão importante e legítima porque, de fato, envolve concepções até de mundo — explica.

Contrapontos

A Secretaria de Desenvolvimento Social de Blumenau informou que os processos são feitos por profissionais experientes e qualificadas para a função e que não acredita em falhas nas análises dos técnicos.

 
A promotora Patricia Dagostin, titular da Promotoria da Infância e Juventude de Blumenau, e a juíza da Vara da Infância e Juventude na cidade, Simone Farias Lock, apontaram que não podem se manifestar sobre os casos, pois estão em sigilo de Justiça. Apontamentos específicos feitos pelas mulheres à reportagem não puderam ser contestados pelas autoridades no decorrer do texto.

 
O porta-voz do TJSC, Francis Silvy Rodrigues, reiterou que o processo segue um protocolo e sempre prioriza resguardar os direitos das crianças e adolescentes. As mães podem recorrer das decisões ao Tribunal de Justiça, em Florianópolis, e ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília.

Albert Lima, defensor público de Blumenau que representa algumas das mães que tentam reaver os filhos

Na contramão de outras cidades, Blumenau tem mais adoções que retorno de crianças aos lares de origem

Na contramão de outras cidades, Blumenau tem mais adoções que retorno de crianças aos lares de origem

BIANCA BERTOLI

bianca.bertoli@nsc.com.br

Blumenau tem mais adoções que reintegrações por ano. Isso significa que a quantidade de crianças que vão para novos lares é maior que o número de menores que são devolvidos às famílias de origem após serem retirados por determinação judicial. As chamadas reintegrações, que são esses retornos aos lares depois de um afastamento temporário, têm mantido o ritmo, ao passo que as adoções se intensificam desde 2018. É o que mostram os números do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) e do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).

 

Os dados causam estranheza em quem atua na área. Não só para integrantes da OAB que acompanham os casos ou para o defensor público Albert Lima, que representa algumas famílias, mas também para especialistas de outros estados. Ariel de Castro Alves, que preside a Comissão de Adoção e Convivência Familiar de Crianças e Adolescentes da OAB-SP, diz que é incomum em Varas da Infância e Juventude do país haver mais adoções do que reintegrações.

 

Em Blumenau, a quantidade de crianças adotadas saltou de 25 em 2019 para 45 em 2021. Neste ano, até julho, foram 23. Em contrapartida, conforme o SNA, foram sete reintegrações em 2019 e 23 em 2021. Em cidades como Caucaia e Franca, no Ceará e São Paulo, que têm população semelhante à de Blumenau, a realidade é oposta ao do município catarinense. Em Caucaia, por exemplo, o número de reintegrações chega a ser, em média, 120% maior que o de adoções.

Na Capital de Santa Catarina, as reintegrações têm superado as adoções desde 2018, ainda de acordo com o SNA.

 

— São sinais de que Sistema de Garantia de Direitos da cidade [Conselho Tutelar, área social da prefeitura e o Judiciário] estaria priorizando as expectativas das pessoas e famílias adotantes e não a convivência familiar, o fortalecimento dos familiares das crianças e a reintegração, como prevê o ECA — critica Ariel.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prioriza a volta da criança para o seio familiar, ressalta a coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da OAB Blumenau, Lenice Kelner. Apenas casos extremos devem resultar em acolhimento e destituição familiar, lembra Ariel, como de violência física, psicológica e sexual, maus-tratos e rejeição.

— Não é aceitável que as mães percam os filhos por questões sociais e econômicas. Nesses casos o Estado deve suprir essas necessidades das famílias. E a lei é muito clara nisso — defende o presidente.

 

Para o porta-voz do TJSC, Francis Silvy Rodrigues, porém, todos os casos que chegam à Justiça são decididos pensando no melhor para a criança. O fato de Blumenau ter mais adoções que reintegrações não é tratado como algo sensível ao Judiciário catarinense:

 

— Não se trata de algo anômalo. Se eventualmente há uma constatação de que há mais casos de adoção do que o retorno dessas crianças (às famílias) é porque ao longo do processo se observou que a condição familiar não melhorou e se constatou que isso não ia acontecer em médio e longo prazo. E tudo isso é acompanhado por uma equipe técnica — diz Francis.

Não é aceitável que as mães percam os filhos por questões sociais e econômicas. Nesses casos o Estado deve suprir essas necessidades das famílias. E a lei é muito clara nisso

Um dos cartazes colocado

pelas mães em frente ao

Fórum de Blumenau pede justiça

Um dos cartazes colocado

pelas mães em frente ao

Fórum de Blumenau pede justiça

Protocolo a ser seguido

É na Secretaria de Desenvolvimento Social (Semudes) que o acompanhamento às famílias começa, já que o papel da assistência é checar as denúncias que chegam e monitorar a situação dos menores. Quando a equipe entende que há necessidade de intervenção judicial, explica o secretário Alexandre Matias, os documentos são encaminhados ao Ministério Público, que tem a função de analisar e, se considerar procedente, enviar à Vara da Infância e Juventude.

 

Tanto o TJSC quanto o MP afirmam também ter equipes especializadas para acompanhamento social das famílias. Quando um caso chega ao Tribunal, a Justiça tem 120 dias para se manifestar sobre o que deve ser feito. É nesse período que pode ocorrer o acolhimento em abrigos. Se os responsáveis pelo menor cumprirem as determinações judiciais impostas para terem o direito da guarda novamente, o pequeno é devolvido.

 

Mesmo quando a criança volta para casa depois de um tempo no abrigo, a família segue sendo acompanhada pela Assistência Social do município no processo de reintegração. Outra consequência, porém, é a destituição definitiva. As três mães ouvidas pela reportagem passaram por essa etapa, o que significa a perda da guarda dos filhos em decisão judicial em primeira instância.

 

Sobre os laudos feitos pela Assistência Social que corroboraram essas ordens, Matias é taxativo:

 

— Todos os pareceres se deram de forma técnica e embasados em provas. Aliás, seria muito mais cômodo dizer que era para permanecer com as famílias, menos traumático, menos trabalhoso. Mas muito pelo contrário, a essência do trabalho delas [assistentes sociais] é que essa criança tenha o melhor futuro possível. Se der para ficar com a família, excelente. Se não der, infelizmente, é necessário encaminhar para adoção — sustenta o secretário.

 

A secretaria fez uma reunião com a OAB, a pedido da Comissão dos Direitos Humanos, para explicar como os laudos são elaborados. Depois, a Ordem ouviu também a Justiça, que mostrou como as provas são avaliadas. A OAB não chegou, por ora, a alguma conclusão sobre ilegalidade ou violação de direitos, mas levará os processos à Capital para que um outro encontro com a Corregedoria-Geral de Justiça seja feito. A ideia é acompanhar o andamento dos casos.

Mesmo quando a criança volta para casa depois de um tempo no abrigo, a família segue sendo acompanhada pela Assistência Social do município no processo de reintegração.

Destituição e reintegração

Apesar das adoções serem comuns em Blumenau, um dado mostra que é expressivo o percentual de crianças que voltam às famílias depois de serem retiradas temporariamente. Neste ano, por exemplo, enquanto 30 crianças foram levadas a abrigos, 19 passaram pela reintegração aos pais. Os dados são do TJSC e SNA, respectivamente.

 
No ano passado foram 36 crianças destituídas do ambiente familiar e 23 devolvidas, o que representa 63%. Já em 2020 foram 29 separações e 15 reencontros definitivos (também 63%). A única ponderação do presidente da Comissão de Adoção e Convivência Familiar de Crianças e Adolescentes da OAB-SP é sobre esse aumento gradativo nas sentenças de destituição.

 
Ciente dessa realidade, a Câmara de Vereadores de Blumenau solicitou uma audiência pública com as instituições envolvidas para debater a perda ou suspensão do poder familiar no município. O encontro, marcado para este mês, foi cancelado por “dificuldade de agenda dos representantes dos órgãos de apoio a crianças e adolescentes e demais convidados”, informou a Casa Legislativa. A ideia, agora, é que a audiência ocorra em novembro.

 
O promotor João Luiz de Carvalho Botega, do Centro de Apoio Operacional de Infância e Juventude do Ministério Público, diz que há a preocupação de aprimorar os protocolos locais para deixar mais claro às famílias cada ação tomada pela rede de proteção à infância nos processos que podem resultar em destituição.

Neste ano, enquanto 30 crianças foram levadas a abrigos, 19 passaram pela reintegração aos pais

expediente

reportagem

Talita Catie
Bianca Bertoli

imagens

Patrick Rodrigues

vídeo

Tiago Ghizoni
Luiza Lobo

design

Ciliane Pereira

edição

Augusto Ittner
Publicado em 15/08/2022

As três mães que participaram desta reportagem autorizaram o uso da imagem pela NSC