PESCA DA TAINHA

Pescadores resistem à falta de investimento para manter viva a tradição em SC e preveem safra de 2 mil toneladas

Os olhares brilhantes de quem quer manter viva a tradição da pesca da tainha não negam a chegada da temporada em Florianópolis. Os 90 dias de duração da pesca artesanal são marcados por uma rotina cansativa, mas cheia de esperança do nascer ao pôr do sol. Anualmente, cerca de 4 mil pescadores fazem parte da temporada na Capital que, apesar de ter começado efetivamente em 1º de maio, tem sua produção adiantada para meados de abril.

 

O dia começa antes das 5h da manhã e o olhar atencioso do “vigia”, pescador designado a ficar em um ponto mais alto da praia, avisa a aproximação de um cardume enquanto os outros pescadores se preparam para a pesca. Seis profissionais vão na canoa e os demais ficam na areia segurando uma das pontas da rede. Cada rancho tem de 30 a 50 pescadores.

 

— O formato é o seguinte: a canoa sai e um pescador vai jogando a cortiça enquanto o vigia acena para soltar a rede devagarinho. Na canoa vão ainda, geralmente, quatro remeiros e mais um pescador. Os outros ficam na praia segurando as pontas e soltando, também, a rede aos poucos —  explica Amilton, patrão do rancho de pescadores FADA, no Campeche.

 

Na época da tainha, os profissionais recebem novos nomes e são chamados apenas pela função – assumida cerca de 20 dias antes do início da temporada: patrão, vigia, chumbereiro, corticeiro e remeiro. Todos se mantêm no rancho diariamente durante a safra. 

 

Apesar da grande movimentação de pescadores nesta época, poucos profissionais sobrevivem apenas da pesca da tainha. Manter a cultura tem se tornado cada vez mais difícil, segundo o que contam os pescadores, por falta de incentivo. No entanto, a vontade de não deixar que a história morra, segue viva entre eles.

 

— A gente tem dificuldades para continuar a tradição, é pouco valorizada. Eles não consideram o pescador, veem a gente como uma classe baixa, mas somos uma profissão que sustenta, que dá comida para a população, assim como os produtores e agricultores — desabafa João Manoel Vieira, dono de um rancho no Moçambique.

 

De acordo com o presidente da Federação dos Pescadores do Estado de Santa Catarina (Fepesc), Ivo Silva, a falta de incentivo para a pesca cultural da tainha é preocupante. O Estado, segundo ele, é um dos maiores exportadores de pescados no Brasil e, mesmo assim, há grandes dificuldades para manter a atividade. 

 

— Deveriam ter interesse em quem somos, o que fazemos e quanto pescamos, existe uma falta de apoio muito grande — diz.

Ainda que haja dificuldades, o sorriso largo de esperança toma conta dos pescadores ao relembrarem os últimos lanços da temporada passada. Segundo o que conta João Manoel Vieira, o esforço vale a pena pela alegria genuína dos profissionais durante a pesca. 

 

 

— Às vezes estamos almoçando e o vigia avisa que tem peixe (…) quando pegamos é uma “gritaçada”, uma festa, e é essa alegria que nos alimenta — conta

Entenda as funções de cada membro de um barco de pesca de tainha artesanal

Patrão

É o pescador designado a conduzir a embarcação. Ele fica posicionado na parte de trás da canoa e determina o ritmo das remadas.

Vigia

Pescador designado a ficar em um ponto estratégico da praia, de preferência no alto, para observar a chegada de cardumes. A partir do sinal do vigia, os outros pescadores começam os trabalhos.

Remeiro

Trabalham para movimentar a canoa.

Chumbereiro

É responsável por jogar ao mar a parte da rede onde estão os chumbos. Ele é também um dos remeiros.

Corticeiro

Assim como o chumbereiro, ele faz parte do time dos remeiros, mas é também o pescador responsável por jogar ao mar a parte da rede com as cortiças. .

De pai pra filho

A tradição centenária da temporada da tainha ainda sobrevive no Litoral Catarinense. Os ranchos em Florianópolis carregam consigo as marcas da história deixada pelas gerações passadas. Nas paredes, a identidade cultural da pesca ainda se mantém viva. Valdelino, de 71 anos, é a segunda geração da família Alexandrino Daniel, responsável pela construção do rancho FADA, no Campeche. Seu pai e quatro irmãos montaram o que hoje é dele e de outros quatro primos.

O manezinho da Ilha, que possui três filhas, acredita que a pesca da tainha vai sobreviver por mais alguns anos, mesmo que seus descendentes não assumam a tradição.

 

— De repente isso vai longe ainda, não sei — conta. 

 

Já José Manoel Vieira, de 76 anos, dono do rancho no Moçambique e pescador há pelo menos 60, teme o fim da tradição em um futuro próximo. O local, comprado pelo pai por 40 mil cruzeiros, ficou sob responsabilidade dele quando o patriarca da família adoeceu em 1997.

 

O rancho pegou fogo há anos e precisou ser reconstruído. Com lágrimas nos olhos, as lembranças ainda trazem tristeza para os que vivenciaram o momento de dor.

 

— Cortou meu coração — relembra

Com um filho que possivelmente não vai assumir a responsabilidade do rancho por conta dos estudos, a tradição familiar deve se acabar ali, acredita José Manoel.

 

 

No local, fazem parte da temporada da tainha 28 pescadores.

“Virou tudo cinza”

Quem também teve o rancho centenário incendiado foi Pedrinho, morador do Campeche e, atualmente, dono de um dos ranchos da região. O local, construído pelo bisavô, pegou fogo três vezes. 

 

 

Em 2008, em uma tentativa de incêndio, foi possível salvar parte dos equipamentos: canoa e  rede. Cerca de oito anos depois, mais uma vez o local pegou fogo e, neste momento, grande parte do rancho foi perdida. 

 

 

No último ano, ainda em pandemia e dois dias antes do início da temporada da tainha, o fogo tomou conta do local pela terceira vez e, neste momento, tudo foi perdido — da estrutura aos equipamentos: “virou tudo cinza”. 

 

 

— Não foi fácil, queimou tudo: canoa, minhas redes de pesca. A gente ainda tá nessa luta — conta.

A voz embargada ao olhar para o local onde tudo aconteceu não nega a tristeza de quem perdeu uma grande história do dia para noite. Segundo o que conta, por volta das 6h de 30 de abril de 2008, o rancho “desapareceu” no fogo. 

 

— Os retratos bonitos, tava tudo muito bonito. Bati o cadeado na quinta-feira e cheguei aqui de manhã e não vi mais nada — relembra. 

 

Na temporada passada, Pedrinho conseguiu equipamentos emprestados e não ficou de fora da safra. O prejuízo de mais de R$ 100 mil mudou a rotina dos pescadores que fazem parte do rancho. O que antes era deixado no local durante todos os 90 dias da safra, agora, são retirados à noite e levados novamente ao rancho improvisado no dia seguinte.

—  O rancho era do meu bisavô e quantas pessoas empurraram essas canoas que queimaram? Ser queimado é perder uma história que tinha lá, uma identidade. Mas a esperança, ainda não perdemos não — conta.

 

Para ele, que tem um filho, hoje a pesca se mantém apenas pelo amor à cultura:

 

— Não vou privar meu filho de fazer uma faculdade pra vir pra cá.

Preparativos e expectativas

Na Barra da Lagoa, o sorriso ansioso de quem não teve uma boa safra em 2021 entrega os preparativos da nova temporada. Entre os mais de 10 profissionais que arrumavam a rede no local, estava Amarildo Raimundo Vieira, que, aos seus 59 anos, coleciona pelo menos 40 de pesca. Manezinho da Ilha de Santa Catarina, o pescador tem a atividade como sua única fonte de renda e passa o ano todo no mar. Além da pesca da tainha, Amarildo trabalha também em outras temporadas, como a da anchova e corvina.

 

No outro lado da Ilha, a situação se repete. No rancho de seu Valdelino, no Campeche, a colocação da rede na canoa traz a ansiedade da temporada 2022, enquanto sorrisos largos refletem a esperança de uma boa safra. Ele, que mora em Governador Celso Ramos, se muda para a Ilha anualmente durante a temporada.

A expectativa da safra para 2022, depois de difíceis dois anos pandêmicos para os pescadores, é de cerca de 2 mil toneladas. Até o momento, as condições são favoráveis para a temporada, segundo a Fepesc, que explica que, nos anos anteriores, as condições atmosféricas não foram positivas. Apesar disso, o pior ano da história foi em 2012, quando foram pescados apenas 500 toneladas.

As lutas durante a temporada

Diversas dificuldades, além da falta de incentivo à pesca, cercam a temporada da tainha. Conforme explica o presidente da Fepesc, Ivo Silva, é preciso que, durante a temporada, haja um ritual climático “perfeito” para que a safra seja boa. O cardume, que saí do Sul do Brasil, deve chegar no Litoral Catarinense e, depois, encostar na praia com a ajuda do vento.

 

O vento sul traz os peixes, mas atrapalha quando eles já estão no Litoral, conforme explica Silva. A chuva, no entanto, não é um problema, apesar de ter agitado o mar na primeira semana da safra 2022, o que dificulta a pesca e afasta a tainha da costa. 

 

Neste ano, a luta dos pescadores é em relação à incerteza das regras para a temporada, segundo Silva. A portaria publicada pelo Ministério da Agricultura não estabeleceu, em 2022, coordenadas para que os pescadores saibam onde podem pescar nas praias. Na prática, isso significa que os profissionais podem realizar a atividade em qualquer lugar, e a preocupação é de que a disputa por espaço gere conflitos entre os pescadores, apesar de a situação ser conversada entre os ranchos.

 

De acordo com o superintendente federal de agricultura em Santa Catarina do Mapa, Túlio Tavares Santos, a portaria que tira as coordenadas dos pescadores foi publicada com a finalidade de disciplinar a pesca de arrasto. Anteriormente, segundo ele, não havia regras para a temporada da tainha, e a partir desta portaria, os pescadores precisam preencher requisitos para exercer a profissão durante a safra.

— Pode até dar conflito, mas a gente tem que seguir a lei. Não podemos dizer que parte da praia é de fulano e de ciclano, a praia é pública. Temos que disciplinar a pesca, quem são os pescadores e quem pode participar da temporada. Onde pescar já é uma questão cultural, mas eu acredito que eles vão continuar respeitando — afirma.

Outra preocupação da federação é a publicação de normas divulgadas em “cima da hora”. De acordo com a Fepesc, são poucos dias para a apresentação de documentos no caso da pesca anilhada, situação que gerou revolta entre os pescadores da prática.

 

Segundo o superintendente, no caso da pesca de arrasto, a portaria é publicada em março e a partir daí, até o início da temporada, pescadores podem mandar a documentação para aprovação. Se aprovado, o profissional pode exercer a profissão. Já na pesca anilhada, a situação é diferente, e a portaria dá cinco dias úteis para apresentação dos documentos. 

 

Os 90 dias de temporada limitam a prática do surf em Florianópolis. Na Ilha, apenas duas praias estão totalmente liberadas para o esporte, conforme afirma a federação: Praia Mole e Praia da Joaquina. A lei municipal proíbe a prática de esportes náuticos em algumas praias e limita a área de surfistas em outras, até o dia 10 de julho – cerca de 70 dias após o início da temporada. Segundo os pescadores, a prática espanta os peixes e atrapalha a pesca durante a safra. 

 

De acordo com a Fepesc, apesar da lei municipal proibir o surf em parte da temporada, os outros 20 dias são combinados com os esportistas para que, caso haja cardume, eles não entrem na água em Florianópolis. Nesta época, há diminuição da chegada de peixe no município e, por esse motivo, a lei libera a prática do surf antes do fim efetivo da safra. 

No Moçambique, os pescadores delimitam a marcação dos surfistas com uma placa, colocada na areia no dia 1º de maio – início da temporada da tainha. A situação, segundo João Manoel Vieira, apesar de controlada, já gerou muitas discussões.

Pesca da tainha e polêmica

A temporada da tainha acontece em três momentos diferentes. No dia 1º de maio, há a liberação apenas da pesca de arrasto, conhecida como artesanal. Em 15 de maio, já é possível fazer a pesca anilhada, de motor, e a partir do dia 1º de junho, a pesca industrial. 

 

 

Segundo o Mapa, nove embarcações estão habilitadas neste ano para fazer a pesca industrial. Já na anilhada, 96 conseguiram habilitação. Outras 35 ainda precisam ainda ser liberadas. Segundo o superintendente da secretaria, os erros apresentados nas documentações das embarcações não aprovadas são, em sua maioria, administrativos.

— Quem faz o preenchimento não é o Mapa, é o próprio pescador. Nós habilitamos 96 embarcações — afirma.

A Federação, no entanto, afirma que o prazo para entrega de documentações é curto e que assim como na pesca de arrasto, a portaria deveria ser publicada com antecedência. Este ano, o prazo de cinco dias gerou revolta entre os pescadores da prática.

Convivência

Os quase três meses de convivência entre os cerca de 30 pescadores precisam de regras para que a temporada funcione. São 90 dias juntos, do café da manhã ao jantar. No rancho de seu Manoel, bagunça e bebidas alcoólicas são proibidas, e a rotina regrada é a chave de ouro para uma boa safra. 

 

 

— Tudo  regrado, às 4h30min levantamos, alguns ainda mais cedo, e viemos de micro-ônibus até aqui. A gente chega, toma café rapidinho, levamos a canoa para baixo, vigia se coloca em posição e, se o mar estiver bom, a gente faz um lanço. Meia hora ou 40 minutos para puxar e depois 40 minutos pra embarcar, depende da quantidade de peixe (…) Ano passado pegamos 7 mil tainhas em um lanço só, isso que algumas fugiram. Mais de 40 anos que não dava um lanço tão grande, foi muito bonito —  conta o pescador e policial aposentado Luiz Carlos Nunes.

Diane Bikel

Reportagem

Tiago Ghizoni

Imagens

Ciliane Pereira

Design

Raphaela Suzin

Edição