Vozes do

Orgulho

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No mês da visibilidade, o DC conta a história de pessoas LGBTQIA+ que lutam pela sobrevivência e ocupação de espaços em Santa Catarina. A reportagem foi divida em cinco partes. Confira abaixo:

Olhares de reprovação, dedos apontados, surra, perseguição. Pessoas LGBTQIA+ são expostas a violências físicas e veladas quando estão na rua, no trabalho ou em uma festa. Frequentar lugares para Rafaella, Haziel, Christian, Fernanda e Valentina e para todos os membros da comunidade significa ser visível ao mundo e os riscos. 

 

A reação agressiva de muitas pessoas pode cercear a liberdade de mulheres lésbicas, homens gays, pessoas bissexuais, transsexuais, queers, intersexuais, assexuais e mais, e os obriga mudar rotina, rota e evitar certos lugares.   

 

Moradora de São José, na Grande Florianópolis, Valentina Gonsalve, 26 anos, mulher transsexual, não sai na rua sozinha. Tem medo de sofrer violência física, pois já foi perseguida algumas vezes. 

 

– Se eu não tiver um grupo com mais pessoas junto comigo, amigos, tenho medo, não tenho coragem (de sair) – conta ela. 

 

O sentimento não é só de Valentina. O publicitário Haziel Schneider, 25 anos, não se sente à vontade de frequentar nenhum lugar. Isso porque ele foi espancado por um estranho na rua, quando estava com um homem em um banco de praça, no bairro Estreito, em Florianópolis. A agressão não foi só física. Machucado, foi obrigado a contar aos pais que é gay. Algo que ele não pretendia expor naquele momento.

 

– Não me sinto tranquilo de frequentar lugar nenhum, essa é a verdade – desabafa Haziel, que também já se sentiu excluído da própria comunidade LGBTQIA+ por ser negro. 

 

A sensação, muitas vezes, é de não pertencer a esse mundo. Em muitos casos, quando a agressão não vem de forma física, ela se expõe pela invisibilidade. De cabelo raspado, tatuada, de blusa cropped justa, Rafaella Schalinski, 23 anos, andava de bicicleta em Blumenau, no Vale do Itajaí, quando viu a mãe de uma criança que andava na rua com a filha se chocar com a passagem dela. 

 

– Ela quase tapou o olho da menina, pra ela (a criança) não ver que estou passando, que existo – relembrou Rafaella, que é uma mulher lésbica, conhecida como Xalinska nas redes sociais. 

 

A tentativa de “não ver”, passa até mesmo pelo termo utilizado para se referir a mulher que sentem atração por outras mulheres. 

 

– A própria palavra lésbica, a pessoa parece que tem medo de falar essa palavra, lésbica, tem um peso, vem uma coisa pejorativa. Às vezes, estou falando, então vem alguém e fala: “Ai, não fala assim”. Como assim? Não fala como? É lésbica. 

 

A ocupação plena de espaços passa também pela liberdade de demonstrar afeto. Algo que o estudante de engenharia ambiental e sanitária, Christian Strack, 25 anos, evita. O único lugar que ele se permite andar de mãos dadas com outro homem é na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC): 

 

– (Na UFSC), sentia que era um espaço seguro. Aqui nunca tive olhares ou me senti desconfortável.

 

De acordo com Ale Mujica Rodríguez, pessoa trans não-binária, que é ativiste, pesquisadore, médique e doutore em saúde coletiva, a exclusão da comunidade LGBTQIA+ passa por “marcadores socais”: 

 

 

– Estamos em uma sociedade que é cisgênero, branca, heteronormativa e colonial, que cria espaços e cenários para pessoas que são LGBTQIA+ não transitem.

 

E complementa: 

 

– Esses marcadores sociais, dependendo se as pessoas então dentro de certa hegemonia ou não, eles vão demarcar simbólica e literalmente os trânsitos dessas pessoas, em diferentes espaços. Seja na rua, em que momentos, em que rua, em que espaços ela pode utilizar pra se divertir ou não, de que formas. 

 

Foi exatamente a ocupação de um local pela comunidade que deu início a celebração do Dia Internacional da Visibilidade LGBTQIA+, em 28 de junho. Segundo a startup Todxs, foi nessa data, em 1969, que ocorreu a revolta de Stonewall. O nome é de um bar, em Nova York, onde a comunidade LGBTQIA+ se encontrava. Na época, a relação entre pessoas do mesmo gênero era considerada crime, e eles eram impedidos de demonstrar afeto em locais públicos. Mas, naquele dia, o grupo resolveu enfrentar a violência policial.  

Orgulho por existir

– As pessoas, às vezes, me falam: “Nossa, mas você nem parece trans”, como um elogio. Mas respondo, quero parecer trans! Tenho orgulho, sou uma travesti, quero ocupar esse espaço. Não tem problema eu parecer uma mulher trans, é o grupo que pertenço e quero pertencer a esse grupo – fala Valentina. 

 

A jovem começou a transição em 2020, quando começou a pandemia. A obrigatoriedade de máscaras na época foi a maior aliada. Isso porque fazia sessões para retirar à laser a barba, e a máscara permitiu que ela cobrisse o momento de transição. Isso fez com que as pessoas a tratassem no feminino, porque viam apenas os olhos. 

 

Em 2021, o Brasil foi eleito, pela 13° vez consecutiva, o país que mais mata pessoas transsexuais e travestis no mundo. Os dados são do Dossiê de Assassinatos e violências contra essa parcela da população brasileira em 2021, produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra). Conforme o dossiê, em Santa Catarina, mesmo com a falta de dados, duas pessoas morreram por serem transsexuais. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, 52 pessoas foram vítimas de violência física motivada por homofobia ou transfobia no Estado, que ocupa o 4º lugar com maior índice de violência contra o público LGBTQIA+ no Brasil. 

 

Dados esses que, para Rafaella, justificam a necessidade de sentir orgulho por ser LGBTQIA+. 

 

– Sinto orgulho por ser LGBTQIA+, por ter sobrevivido. Vai bem além do “Ah, tenho orgulho de gostar de mulher”. Não, tenho orgulho de fazer parte de um grupo que é historicamente oprimido – explica. 

 

O mês do orgulho LGBTQIA+ é marcado por paradas da diversidade e outros eventos, que buscam chamar a atenção para a comunidade. Para Christian, essas manifestações são necessárias até que a violência pare e os direitos sejam garantidos. 

 

– Tenho orgulho porque existo. E acho que a gente precisa ter orgulho enquanto isso for uma pauta, enquanto nossos direitos não forem iguais, enquanto eu não puder andar na rua, casar, ter filhos, tenho que sentir orgulho. Porque não é sobre quem gosto, é sobre quem sou – destaca. 

 

Ambos bissexuais, o estudante e Fernanda Martins, 26 anos, compartilham a falta de crédito e respeito dentro e fora da comunidade LGBTQIA+: 

 

– De amigos meus falarem pra mim, quando falo da relação que tive com mulheres: “Esqueço que você é bissexual”. E aí vem a parte da invalidação da minha sexualidade. 

 

A fala de Christian se parece bastante com a de Fernanda, que também reclamou de não ser levada à sério: 

 

– Quando falo, as pessoas não botam muita fé. Tu é realmente? Tem certeza? Não é uma fase? Hoje tu tá ficando com mulher, mas já vai passar, ou o contrário.  

Fora do armário

A família de Christian se mudou de Iporã do Oeste, na fronteira entre Santa Catarina e a Argentina, para Florianópolis nos anos 1990, e o estudante de engenharia nasceu e foi criado na Capital. Ele se sentiu obrigado a contar para os pais que é bissexual, após parte da família que ainda estava no Oeste descobrir o relacionamento dele com outro homem. 

 

– Para ter algum controle da situação, contei. Mas senti que esse momento foi roubado de mim – desabafa. 

 

Ele fala que foi “empurrado” para fora do armário, já que uma situação externa o obrigou a falar sobre o assunto com os pais. Palavra utilizada por Haziel, que tem o mesmo sentimento já que se revelou à família após agressão. 

 

Fernanda contou ser bissexual aos pais há sete anos, e mesmo orgulhosa, reconhece o momento como um dos mais difíceis desde que se descobri bissexual. Um dia depois de se assumir, ela saiu de casa. Assim como para ela, muitas pessoas não encontram apoio familiar. 

 

– Eu me assumi, no outro dia tive que fazer minha mochila e sair, porque minha mãe não queria me ver. Foi bem pesado para os meus pais. Fiquei seis meses indo e vindo – conta Fernanda, que atualmente mora em Florianópolis e encontrou na cidade uma oportunidade para viver a sexualidade. 

 

– O medo é da rejeição por pessoas que você mais gosta – complementa Christian.  

Trans são mais vulneráveis

Dados mostram que existem camadas de privilégio dentro da comunidade LGBTQIA+, ou seja, certos grupos correm maior risco e sofrem mais violência. O relatório do Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ mostrou que, em 2020, mulheres trans e travestis correram 17 vezes mais risco de serem assassinadas do que um homem gay no Brasil. Os números foram levantados pelo coletivo Acontece Arte e Política LGBTI+ e o Grupo Gay da Bahia. 

 

O Observatório ressalta, no entanto, que os números podem estar defasados já que muitas Secretarias de Segurança Pública não descrevem a raça das vítimas. Ainda assim, 54% das mortes por lgbtfobia são de pessoas negras ou pardas. Em 2020, segundo a pesquisa, 74 pessoas pretas ou pardas morreram por serem LGBTQIA+, em comparação com 64 brancas e 99 que não tiveram a raça descrita. Os dados podem estar subnotificados devido à pandemia, segundo o levantamento. 

 

Como pessoa trans não-binária, Ale ressalta que homens transsexuais e pessoas não binárias trabalham para que mais dados relacionados às violências sofridas por esse grupo sejam explorados. Mas a violência, como ressaltou Ale, não abrange apenas o âmbito da ameaça à integridade física ou à vida. Pessoas LGBTQIA+ podem ter direitos à saúde, educação e trabalho cerceados pelo preconceito. 

 

Valentina é um exemplo disso. Ela lembra dois episódios que prejudicaram a vida escolar, quando antes mesmo de ter se assumido uma mulher trans, foi vítima de violência. A primeira vez ela tinha 15 anos e se apresentava como homem gay. Em um ritual comum no colégio onde estudava, alunos costumavam quebrar ovos uns nos outros no final do semestre ou do ano. No primeiro ano do Ensino Médio, Valentina foi cercada por um grupo de sete meninos que arremessou ovos na direção dela. 

 

– Não era igual nas outras pessoas, que você chegava perto e quebrava o ovo nela, era de longe, comigo no meio da roda. Fui correndo para professora pedir ajuda e ela falou muito alto, para todo mundo que estava ali ouvir: “Ah para né, sei que você quer que esses meninos se esfreguem em você” – relembra. 

 

O momento marcou a jovem, que saiu correndo da instituição aos prantos e deixou de ir às aulas por três meses. Só voltou a estudar quando soube que a professora tinha sido demitida. 

 

No terceiro ano do Ensino Médio, Valentina e uma amiga, que também não havia feito a transição para mulher trans, foram convidadas pela escola a utilizar o banheiro exclusivo para professores. Isso porque a presença delas incomodava os meninos que usavam o banheiro masculino. Mas o episódio fez com que a travesti largasse o último ano do Ensino Médio, que só foi finalizar alguns anos depois, aos 22 anos. 

 

A jovem confessa que há pelo menos dois anos evita ir ao médico ou a prontos-socorros, locais que insistem em chamá-la pelo nome de batismo e não pelo que escolheu: Valentina. Ela lembra que, quando positivou para a Covid-19, quase recusou atendimento quando foi chamada em voz alta pelo nome de batismo em meio à sala de espera lotada da emergência. 

 

O processo para a retificação do nome demorou mais para Valentina, porque quando decidiu pela transição, estava desempregada. Sem renda, ela não conseguiria pagar as taxas, que custam em torno de R$ 300. Assim como outras pessoas transsexuais, teve que entrar com um processo judicial, que pode demorar mais, com o auxílio de uma advogada que não cobrou honorários para conquista do direito. 

 

Foi em uma oportunidade de emprego exclusiva para pessoas trans que Valentina conseguiu trabalhar sem medo de ser desrespeitada por colegas. Com orgulho, ela diz que é a única funcionária trans do shopping Itaguaçu, em São José. 

O futuro é agora

A reportagem perguntou aos cinco entrevistados o que se pode fazer hoje para ter um futuro melhor. Para Haziel, a mudança pode começar com a comunidade LGBTQIA+ entendendo o papel político e referência para outras pessoas do grupo. 

 

– Muitas pessoas olham para você e têm uma esperança. A gente tem que ter noção do nosso lugar no mundo, e ter noção que ser LGBTQIA+ é algo político. Começa na gente, mas não depende só da gente – fala. 

 

Para Christian, o combate à lgbtfobia passa pela representatividade e pela criação de políticas públicas para a comunidade: 

 

– Não tem outro jeito. É ocupar espaços. A gente precisa ser colocado em locais de visibilidade até ter os mesmos direitos que a outra pessoa. 

 

Fernanda acredita que a mudança pode começar pela família, que muitas vezes precisa de instrução para respeitar o filho, filha ou filhe. Valentina reforça que gênero e sexualidade são temas que precisam ser tratados em escolas. 

 

Rafaella, por sua vez, entende que o futuro pode ser diferente quando pessoas cis e hetero também se manifestarem ao presenciarem cenas de violência contra a comunidade LGBTQIA+: 

 

– Acho que você estar em silêncio é estar do lado do opressor. Então, se você tá em uma situação de homofobia, se você faz algo para mudar, aí você tá fazendo algo com a sua heterossexualidade, com a sua branquitude, com o seu lugar de privilégio. 

 

A responsabilidade de pessoas que não fazem parte da comunidade LGBTQIA+ também foi lembrada por Ale, citando ainda que, muitas vezes, é esperado que mulheres lésbicas, homens gays, pessoas bissexuais, transsexuais, queers, intersexuais, assexuais e mais ofereçam a pergunta e a resposta para a mudança. Mas, na visão de Ale, deveria ser o contrário: 

 

– Me diga o que vocês, pessoas cis hétero, podem fazer para que nós, pessoas LGBTQIA+, não continuemos sofrendo as violências que vocês mesmo criaram? Então, vai lá, pensem vocês em algo – conclui. 

expediente

reportagem

Gabriela Ferrarez

imagens

Tiago Ghizoni
Arquivo pessoal

design

Ciliane Pereira

edição

Raphaela Suzin
Everton Siemann
Carolina Marasco
Publicado em 26/06/2022