Sc e os extremos do clima 2

Cada vez mais perto

Aumento do nível do mar causa impactos em Santa Catarina e ameaça deixar regiões litorâneas embaixo d’água nas próximas décadas. Especialistas alertam para necessidade imediata de implantar políticas públicas para amenizar problemas relacionados às mudanças climáticas

Praia da Península, em Barra Velha, se vê presa entre as rochas e o aumento do nível do mar que já é sentido por moradores locais 

Os azuis do mar e do céu sem nuvens quase se confundem ao olhar para o horizonte. É manhã de um dia de semana no Litoral Norte de Santa Catarina e, apesar do sol brilhar sem empecilhos, não há pessoas na praia. A temperatura é agradável, o vento está fraco e as ondas quebram sem pressa, alternando o barulho característico com momentos de completo silêncio. Vez ou outra, o ruído do choque da água em enormes pedras espalhadas pela faixa de areia rouba a atenção. Elas não pararam ali por acaso e tampouco são obras da natureza. As rochas atuam como escudo, em uma tentativa dos moradores de evitar que o mar atinja as casas construídas bem na frente do oceano. 

 

A cena é em Barra Velha, mas se repete em outras cidades catarinenses por um motivo simples: o aumento do nível do mar. Conforme o geólogo e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Norberto Horn Filho, a região costeira no Centro-Norte do Estado é a principal afetada pelas consequências da erosão por abrigar as cidades litorâneas mais urbanizadas. O fenômeno, que se resume ao recuo da linha da costa em direção ao continente, ganha outros contornos quando se avalia a influência humana em toda essa conta.  

 

— Aqui é importante reforçar: não estamos falando em maré, que sobe e desce diariamente e é um processo que existe há milhões de anos. A maré não “come” a praia. Isso tem relação com o nível médio do mar —  explica o especialista. 

 

O aumento no nível do mar já é uma realidade, com 20 centímetros a mais em relação ao que era no começo dos anos 1990. Parece pouco, mas o que preocupa a ciência é que, nos últimos anos, o comportamento do derretimento das geleiras indica um processo de aceleração nessa elevação. Se nada for feito, a estimativa é de que em menos de 80 anos o oceano esteja, em média, 1,2 metro mais “alto”. E se aqui também não parece muito, o pesquisador em mudanças climáticas, Paulo Horta, explica: 

Praia da Península, em Barra Velha, se vê presa entre as rochas e o aumento do nível do mar que já é sentido por moradores locais

– Um metro é a média mundial, em alguns lugares vai subir muito mais e em outros muito menos. Dependendo do local, do momento e da circulação (dos ventos), pode elevar a maré em dois, três metros.

O aposentado Roberto Luiz Grotmann, 62 anos, não acredita que o mar vá avançar mais do que o já observado. Ele comprou uma casa na faixa de areia da Praia da Península, em Barra Velha, há pouco mais de um ano. Área de Preservação Permanente (APP), não se pode construir no local. No entanto, a maioria das residências erguidas antes da lei permanece de pé. Outras, deterioradas pela ação do mar ao longo dos anos, foram destruídas pela prefeitura. 

 

Uma delas ficava ao lado do imóvel de Roberto. Diante dos escombros da casa vizinha, que foi derrubada após ação do Ministério Público no fim do ano passado, ele diz não temer que o mesmo ocorra com o próprio lar, mas revela estar trabalhando em uma obra para reforçar o fundamento do imóvel com tubos de concreto.   

 

A questão do nível do mar está diretamente ligada ao aquecimento global. A grosso modo, com a temperatura média mais alta, há uma aceleração no derretimento das geleiras na Antártida e na Groenlândia, o que eleva a quantidade de água nos oceanos. Como as atividades humanas estão ampliando o aquecimento na atmosfera com a emissão de gases do efeito estufa, o resultado não poderia ser diferente. 

 

Se o gelo nos extremos do planeta passar pelo que os estudiosos chamam de “ponto de inflexão”, que é quando o derretimento é tanto que é impossível evitar que o resto também se transforme em líquido, as mudanças climáticas possivelmente serão irreversíveis por milhares de anos. Ao que tudo indica, o manto na região da Groenlândia está caminhando nessa direção.

E o que Santa Catarina tem a ver com tudo isso?

Horn Filho lembra que a maior cobertura de gelo do planeta é a da Antártida, próxima da “ponta” da América do Sul, onde está Santa Catarina. Ou seja, essa região é a que primeiro sente os reflexos do degelo. Quem vive de frente para o mar consegue entender o que isso significa. Roberto Koch, 68 anos, e Regina Maria Koch, 69, vizinhos de Roberto Grotmann na Praia da Península, em Barra Velha, não ignoram os sinais vindos do oceano: 

 

— Está vendo o mar batendo naquelas pedras? Antes a gente conseguia caminhar na faixa de areia na frente delas, faz uns anos que a água subiu e agora não tem como atravessar para o outro lado — comenta Roberto Koch.

Aumento do nível do mar fez moradores da Praia da Península enfrentarem uma encruzilhada entre a terra e o oceano

O casal mora com a filha em uma residência que é separada da praia por uma estreita rua de barro e areia, mas ainda em APP. Têm o mar como quintal, um sonho antigo e que só foi possível começar a realizar há 10 anos, quando compraram o imóvel com o dinheiro de uma herança. De Curitiba, Regina e Roberto amam o pedaço de paraíso que chamam de lar, mas sabem que é por tempo determinado:

— Acho que daqui uns 20 anos não vai ter como morar aqui. Uma coisa que observamos é que as ressacas mais severas, que chegam no nosso terreno, estão mais frequentes também. O mar está tomando conta — opina o aposentado.

De fato está, acredita Norberto Horn Filho. O geólogo da Fundação do Meio Ambiente de Barra Velha, Jonathan Lopes, complementa que na erosão presenciada na cidade, a ação dos ventos e das ondas não encontra qualquer barreira natural de vegetação para minimizar os processos erosivos. Por isso, é comum os moradores afetados construírem “muros de contenção” com pedras gigantes. 

 

— Simplesmente despejam rochas em frente ao imóvel para se proteger das ondas. Com isso, a ação das águas se intensifica e a erosão aumenta sob as rochas depositadas com o passar do tempo, principalmente durante os eventos de ressaca. “Resolve” apenas em curto prazo — diz Jonathan.

 

Regina e Roberto já viram as pedras da barreira feita do outro lado da rua diminuirem de quantidade ao serem levadas pelo mar. Reposições são feitas de tempos em tempos, em uma luta contra os efeitos da erosão. O casal testemunhou também a desistência de vizinhos, que abandonaram ou venderam os imóveis ao concluírem que essa é uma guerra impossível de ser vencida. 

 

A região é uma área de risco que fica ainda mais em cheque diante do aumento do nível do mar, um fator que intensifica esses desgastes, “uma vez que a água atingirá áreas que antes não atingia, causando inundações e isso somado ao aumento da energia das ondas”, detalha Jonathan. 

O que hoje é terra vai virar água

Se as projeções se confirmarem, em menos de 80 anos lugares que hoje possuem imóveis terão de ceder espaço ao oceano. É o caso de um trecho da turística Barra Sul, em Balneário Camboriú, por exemplo. Conforme o mapa da Climate Central, que se baseia em diferentes dados científicos já publicados e revisados, caso os níveis de poluição não sejam controlados, o mar vai ocupar a ponta da Barra, no encontro com o Rio Camboriú, tornando o espaço habitável menor. 

 

Já a região da Praia da Península, em Barra Velha, ficaria totalmente alagada, unindo o oceano à lagoa que fica do outro lado da via. Outro ponto que pode ter uma mudança significativa está em Tijucas, com a água atravessando a BR-101 nas áreas mais baixas. Em Laguna, no Sul, o mar mais elevado faria as lagoas também terem o nível mais alto, o que geraria uma grande inundação ao redor da Lagoa Jaguaruna.  

 

Esses são apenas alguns dos impactos que devem ser observados em Santa Catarina a longo prazo. A preocupação sobre o futuro, no entanto, não é prioridade no presente. A prefeitura de Barra Velha não aborda a possibilidade do avanço do nível médio do mar nos planejamentos feitos. Balneário Camboriú, que faz parte do Projeto Orla, não respondeu sobre essa questão especificamente.  

Como será em 2100?

Estudo da Climate Central mostra como podem estar algumas cidades de SC daqui a 80 anos por conta do aumento do nível do mar. Arraste a linha para o lado e veja a projeção

Balneário Camboriú

barra velha

TIJUCAS

Laguna

BIGUAÇU

Sem ações práticas

O governo federal avalia ativar um programa para tratar da questão da elevação do nível do mar. A ideia é definir as ações que precisarão ser feitas antes do avanço da água, explicou a coordenadora-geral de Gerenciamento Costeiro do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marinez Scherer, durante uma palestra no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). 

 

Mapeados os riscos e vulnerabilidades de cada município, o segundo passo será fazer a gestão do problema, ou seja, decidir o que deve ser feito: se o engordamento da praia, a remoção de casas, adaptação do plano diretor, entre outros.

— É muito mais barato e socialmente justo a gente agir antes do que esperar acontecer. Muito. Estamos trabalhando em uma metodologia, discutindo com os acadêmicos qual que será utilizada no Brasil para definir essa linha de costa, essa subida de nível do mar — disse a coordenadora.

Está em fase de estruturação também uma pesquisa liderada pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Economia Verde. O estudo já começou a indicar alguns impactos no Sul do Estado, mesorregião onde a análise está focada. Entre eles está a erosão e a inundação de áreas costeiras, com a consequente perda de área de praias, deterioração de infraestruturas públicas e privadas, como casas, ruas, e a interrupção de operações portuárias e industriais.

 

— A pesquisa avalia fatores de riscos, impactos e vulnerabilidades associadas à mudança do clima, incluindo, entre outros, os efeitos da elevação do nível do mar e da ocorrência de eventos extremos, como ciclones e marés de tempestade no território catarinense e em atividades setoriais — detalha a diretora de Clima, Economia Verde, Energia e Qualidade Ambiental, Gabriela Brasil dos Anjos. 

 

A secretaria aponta algumas medidas de adaptação para tudo isso, como restauração e conservação dos ecossistemas costeiros, a implantação do Projeto Orla nos municípios (programa federal que tem como objetivo garantir o uso sustentável das zonas próximas ao mar), atualização do Plano Estadual de Gerenciamento Costeiro, a criação e conexão de Unidades de Conservação marinha, monitoramento da linha de costa e ações de conscientização. 

 

Na prática, apenas o Projeto Orla tem saído do papel. Como a adesão é voluntária, dos 41 municípios catarinenses costeiros, 15 demonstraram interesse em participar. O primeiro passo é fazer um Plano de Gestão Integrada da Orla, que é aprovado pela secretaria estadual. Até agora, os planos de Penha, Araranguá e Balneário Camboriú receberam a validação do órgão.

Paulo Horta, pesquisador da UFSC, explica que a transição energética e o fim do desmatamento no Brasil são cruciais para amenizar o impacto das mudanças climáticas.

— Precisamos acelerar a adaptação, trabalhar na mitigação — pede Horta.

Paulo Horta, pesquisador da UFSC, explica que a transição energética e o fim do desmatamento no Brasil são cruciais para amenizar o impacto das mudanças climáticas.

Para o especialista, o “ponto de inflexão social” é tão poderoso quanto o temido ponto de inflexão nos mantos de gelo. Isso significa que a comunidade tem capacidade de minimizar tudo o que está acontecendo, mas não é um processo fácil. Entre as ações urgentes na visão do pesquisador está a restauração das áreas devastadas das florestas e, claro, o fim do desmatamento. As vegetações são essenciais para o equilíbrio do planeta, já que, entre outras funções, têm o poder de “capturar” o dióxido de carbono, um dos gases do efeito estufa e que é enviado em excesso à atmosfera por conta das atividades humanas. 

 

Então a solução passa também por frear a queima de combustíveis fósseis como o petróleo, gás natural e carvão. É um passo importante, ainda que o cenário não seja animador, já que as pesquisas mostram que o nível do mar continuará subindo. Diante disso, é preciso que as cidades costeiras reavaliem a maneira como estão crescendo. Para ontem.   

 

— Tem de haver uma reconfiguração da linha de costa, colocar boa parte da infraestrutura em áreas mais altas. As cidades catarinenses estão evitando essa discussão e isso só aumenta as consequências — critica Paulo Horta.

Especialista afirma que é necessário colocar ações públicas na prática já que o aumento do nível do mar vai mudar drasticamente a geografia do litoral

Veneno no mar

Para além da elevação do nível do mar, há outra questão relacionada ao oceano que tem preocupado a comunidade científica: a presença de microplástico na água, que leva esse nome por ter até 5 milímetros. Eles chegam ao oceano já com esse tamanho ou, principalmente, depois de “se esfarelar” dos lixos que acabam parando na água, como explica Mara Oliveira, coordenadora de limpezas de praias da Sea Shepherd Brasil, uma organização internacional de conservação da vida marinha.

 

Mara foi uma das integrantes de uma equipe que percorreu 300 praias do país para coletar amostras que vão ajudar cientistas da Universidade de São Paulo (USP) a mensurar o impacto dos resíduos nesses locais. O resultado deve ser divulgado ainda neste mês, mas  algumas constatações já puderam ser feitas. Nas praias do Sul, por exemplo, a cada meio metro quadrado foram encontrados 22 pedaços de microplásticos.

– O mar virou uma sopa plástica entre micro e macro – descreve Mara sobre o que viu durante os 18 meses que rodou o Brasil pelo projeto.

Oceanógrafo e professor do Instituto Federal de Santa Catarina em Itajaí, Thiago Alves lembra que há outros estudos que mostram a presença de microplásticos nos animais consumidos pelos seres humanos, como camarões e ostras. Com o contato inevitável, já que esse tipo de poluição está por toda parte, não só no mar, é impossível impedir a entrada no corpo. 

 

Já foi encontrado o material no sangue, tecidos humanos e até leite materno. Dentro do corpo, já em uma versão que não se enxerga a olho nu (nanoplástico, menor que 0,1 milímetro), os estragos são incertos. 

 

– Essa é a maior ameaça porque ainda não sabemos o tamanho do impacto, mas vai ter consequências, por isso é tão importante a precaução – acredita o professor. 

 

Mara lembra que o plástico deriva do petróleo e “continua soltando gases cancerígenos” mesmo nas versões minúsculas. Por isso há a suspeita que esse “consumo” inevitável possa estar ligado a casos de câncer no trato digestivo, problemas cardíacos e até de infertilidade. Estudos futuros devem deixar mais claro o real impacto disso tudo para a vida humana. 

 

No ambiente marinho, as consequências já são mais conhecidas e vão desde o encurtamento da vida dos animais, lesões, reflexo na reprodução e até a morte, resume o biólogo e docente do Instituto Federal de Santa Catarina em Florianópolis, Walter Widmer. Ainda assim, tanto o professor quanto os demais pesquisadores são enfáticos ao afirmar que, mais uma vez, não é o plástico o maior problema, mas sim o uso que as pessoas fazem dele. O mau uso.

– Só 3% de todo plástico do planeta é reciclado – lamenta Mara.

Para Alessandra Fonseca, doutora em Oceanografia e professora na Universidade Federal de Santa Catarina, é preciso diminuir a produção desse material a nível mundial. Isso atrelado a uma verdadeira força-tarefa para colocar em prática ideias de reciclagem e outras ações de educação ambiental podem ser o caminho para diminuir as toneladas de lixo que chegam ao litoral diariamente. Para a maioria dos estudiosos não se trata de uma guerra contra o plástico, mas de uma busca por uma convivência mais sustentável.  

 

– É um genocídio no mar. A gente precisa fechar a torneira do plástico. É importante descartá-los de forma responsável – pede Mara. 

 

Como quase todas as situações envolvendo o meio ambiente, uma mudança coletiva de comportamento levaria anos para surtir grandes efeitos. É literalmente plantar hoje para colher em um futuro que muitos nem estarão vivos para presenciar. 

Quem está disposto a mudar a forma de agir em nome das futuras gerações?

Nos botões abaixo, confira as três reportagens da série e entenda mais sobre o impacto das mudanças climáticas em SC

Expediente

 

Reportagem: Bianca Bertoli | bianca.bertoli@nsc.com.br

Design: Ciliane Pereira | ciliane.gularte@nsc.com.br

Infografia: Ben Ami Scopinho | ben.scopinho@nsc.com.br

Fotografia: Patrick Rodrigues | patrick.rodrigues@nsc.com.br

Edição: Augusto Ittner | augusto.ittner@nsc.com.br

Publicado em 15/6/2024
Atualizado em 10/7/2024