Sc e os extremos do clima 2

O clima, o mosquito, a dengue

Mudanças climáticas aumentam a temperatura média em Santa Catarina e contribuem para proliferação do mosquito da dengue, revela estudo da Fiocruz. Estado registra triste recorde de casos e mortes atrelados à infestação do Aedes aegypti que encontra cenário ideal para se reproduzir em massa

Antes ela atrapalhava um pouco. Agora, incomoda muito mais. O aumento expressivo de casos de dengue em Santa Catarina nos últimos anos acendeu um sinal de alerta: seria esse mais um indicativo das mudanças climáticas? Especialistas têm certeza que sim. Em 2024, no mesmo ano em que os óbitos de catarinenses pela doença alcançaram patamares históricos, o Estado enfrentou a chegada de um novo vírus relacionado aos mosquitos: a febre do Oropouche.

 

Em comum, além de boa parte dos sintomas e a falta de um remédio específico para cada uma, as duas enfermidades têm como transmissores esses pequenos insetos. A febre do Oropouche, conhecida como a “doença do maruim”, já que o mosquito é o principal vetor, não preocupa tanto porque até agora não houve registros de infectados que morreram por conta dela no Brasil. O mesmo não ocorre com a dengue, que sobrecarrega o sistema da Saúde e causa mortes.

Sem estações bem definidas e com mais calor, Aedes aegypti encontrou em boa parte de SC o território ideal para se multiplicar

Clima favorável

Christovam Barcellos, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz, publicou recentemente no portal Nature um artigo que relaciona o avanço da dengue no país com as mudanças climáticas. Para ele, entre todos os fatores que explicam o aumento nos números — incluindo em Santa Catarina —, o clima é o principal: 

 

— Parece que estamos mudando de patamar. Essa repetição das ondas de calor, aumento de chuvas e verões mais duradouros tornaram as regiões mais suscetíveis — diz. 

 

Muito além da falta de cuidado com a água parada, as ações dos moradores ao longo dos anos contribuíram para a aceleração da elevação da temperatura média do planeta e, com isso, Santa Catarina, que antes tinha as estações mais bem marcadas, começou a sofrer uma “tropicalização”, com os dias quentes e com menos variação nos termômetros se tornando mais frequentes. Em Florianópolis, por exemplo, a temperatura média entre 1991 e 2020 ficou 1ºC mais alta em relação ao registrado nas três décadas anteriores, mostrou um levantamento do Instituto Nacional de Meteorologia. 

 

A reprodução do Aedes aegypti é viável entre 18ºC e 33°C, cita a pesquisa de Barcellos. Quando há muitos dias de frio, os mosquitos morrem, mas os ovos resistem por meses a fio, complementa o entomólogo Marcelo Vitorino, especialista em insetos. Assim que o período mais quente volta, eles eclodem, as larvas ressurgem e todo o ciclo recomeça. Não à toa, os meses mais críticos de casos são os primeiros do ano, na época do verão. 

Sem estações bem definidas e com mais calor, Aedes aegypti encontrou em boa parte de SC o território ideal para se multiplicar

— O Aedes aegypti é uma espécie invasora e exótica que já foi erradicada, mas voltou ao país na década de 1950. Agora não tem mais como acabar com ela devido à proporção que tomou — lembra Vitorino.

Diminuição dos predadores naturais do Aedes aegypti também impacta no aumento da população do mosquito, explica o entomólogo Marcelo Vitorino

Dentro da Diretoria de Vigilância Epidemiológica (Dive) de Santa Catarina, as questões climáticas também são vistas como a principal explicação para a transmissão da dengue ter atingido uma “magnitude importante” no Estado, como avalia o diretor da instituição, João Augusto Fuck: 

 

— Nos últimos anos nós não vemos mais invernos tão rigorosos, ou seja, durante todo o ano as temperaturas estão mais elevadas, com chuvas mais concentradas, o que significa uma condição ambiental muito favorável para reprodução do mosquito. 

Fonte: Ministério da Saúde/Sistema de Informação de Agravos de Notificação

Um retrato da dengue em SC

Os números mostram uma clara expansão da área de transmissão da dengue em direção ao Sul do Brasil, evidencia o estudo de Christovam Barcellos. Ao observar o avanço de focos e casos ao longo do tempo em Santa Catarina, é possível perceber que boa parte da região serrana vem escapando da preocupante estatística. Não por coincidência, esse é o ponto mais frio do Estado, onde, por enquanto, as consequências do aumento de temperatura não são tão perceptíveis. 

 

— A Serra tem dias de calor, mas eles duram pouco, por isso que ela ainda está sendo poupada — detalha. 

 

Apesar das características geográficas protegerem a Serra, mais da metade de Santa Catarina já se encontra em condição de infestação da doença, segundo dados da Dive. Dos quatro sorotipos de dengue existentes no Brasil, dois circulam pelo Estado. 

— Se o sorotipo 3 chegar a Santa Catarina vem a preocupação com quem já adoeceu uma, duas vezes e tem de enfrentar a terceira. As infecções posteriores geram risco de casos mais graves — revela Fuck.

Quem pegou dengue torce — e tem cuidado redobrado — para não contrair o vírus novamente, garante o personal trainer e treinador de triathlon de Blumenau, Yan Leduc. O diagnóstico dele foi um dos 176,8 mil confirmados no Estado neste ano até começo de junho. Mesmo tendo como hábito passar repelente diariamente, junto com a esposa e a filha pequena, o atleta não conseguiu evitar a doença. 

 

Yan, que treina duas vezes ao dia, ficou “derrubado”. Foram duas semanas difíceis, uma delas apenas deitado, sem forças sequer para pegar um copo d’água e fazer a hidratação necessária para a recuperação. Ele estava há um ano se preparando para uma competição de três dias, o Ultraman. A dengue chegou um mês antes da prova. 

 

O homem conseguiu vencer o vírus e se livrou da fraqueza no corpo, da dor nas articulações, da febre e de todos os outros sintomas da doença a tempo de enfrentar o grande desafio, mesmo com a perda de seis quilos. 

Yan Leduc teve dengue um mês antes do maior desafio da vida e sentiu na pele a força da doença contra o corpo (Foto: Arquivo Pessoal)

Yan Leduc teve dengue um mês antes do maior desafio da vida e sentiu na pele a força da doença contra o corpo (Foto: Arquivo Pessoal)

O blumenauense teve a sorte de não pertencer ao grupo de 6,7 mil infectados catarinenses que necessitaram de internação em 2024, até o começo de junho. Entre os que tiveram dengue nos primeiros cinco meses deste ano, 224 morreram devido às complicações, o maior número desde que o primeiro surto foi identificado no Estado, em 2014, em Chapecó, Maravilha (ambas no Oeste) e Itapema (no Litoral Norte). 

 

Em 2016, dois moradores morreram por conta da dengue e oito cidades catarinenses atingiram o nível de epidemia. Atualmente são 168 municípios infestados pelo mosquito. Na visão de Barcellos, os óbitos são totalmente evitáveis, bastando um investimento alto em vacinação. 

A culpa é nossa

Por trás de todo esse cenário estão exclusivamente as ações humanas. Vitorino e Fuck fazem uma série de críticas a hábitos de um cotidiano cheio de erros, que vão desde o lixo acumulado em terrenos, a água parada em ambientes profissionais e residenciais, até as dificuldades do poder público em fazer as ações de vigilância epidemiológica e controle vetorial.

— Não sei qual estratégia ainda precisa ser adotada para conscientizar as pessoas. Não adianta tentar agir quando o problema já está estabelecido — enfatiza o entomólogo Marcelo Vitorino

Dias com mais calor e umidade do que o normal e mau uso do solo impactam na proliferação sem precedentes do mosquito da dengue, reforça Vitorino

Junto com essas pequenas estão as grandes atitudes e decisões que moldam o presente e o futuro. É preciso pensar no macro e combater as mudanças climáticas. Christovam Barcellos cita, como todos os especialistas quando são questionados sobre o assunto, a drástica diminuição da emissão de gases poluentes, vinda principalmente da queima de combustíveis fósseis como o petróleo, gás natural e carvão.  

 

— Ou pelo menos localmente manter áreas verdes (incluindo a mata ciliar), já que isso segura um pouco os picos de temperatura e garante um pouco de biodiversidade, que é importante (por conta dos predadores dos mosquitos) — complementa o profissional. 

 

Como controlar o clima se torna apenas um sonho da ciência diante das ações da sociedade, o aumento da temperatura média vai se confirmando e o catarinense precisa decidir: ou muda de postura para tentar amenizar os impactos ou aceita que a dengue veio para ficar, não se limitando apenas a surtos pontuais.

Outro mosquito, outra doença

No início deste ano, infestação de maruins assustou Luiz Alves e fez a pequena cidade do Vale decretar “guerra” contra o mosquitinho (Foto: Divulgação)

Nas redes sociais, as imagens impressionaram. Pequenos “pontos” pretos disputavam espaço nas pernas dos moradores de Luiz Alves, no Vale do Itajaí. Eram os maruins, espécie de mosquito comum na cidade conhecida pelos bananais. Eles tomaram uma proporção tão grande que a prefeitura chegou a decretar situação de emergência neste ano. “Os municípes não suportam mais o desconforto das picadas”, dizia o documento. 

 

A situação no município de cerca de 12 mil habitantes foi um prenúncio do que estava por vir. Semanas depois, Santa Catarina constatou a chegada de mais uma doença transmitida por mosquitos. A febre do Oropouche, comum na região Amazônica, teve o primeiro caso confirmado em solo catarinense em abril. Porém, o diretor da Dive-SC alerta que os diagnósticos podem ter surgido somente este ano por conta da ampliação dos testes. 

 

Com sintomas muito semelhantes à dengue, o olhar nunca havia se voltado ao Oropouche justamente pela gravidade, já que essa é uma doença que não leva à morte. Atrelada ao maruim, um mosquito nativo e muito presente no Estado, o controle da febre do Oropouche é mais difícil devido à forma como o vetor se reproduz. 

Nas redes sociais, as imagens impressionaram. Pequenos “pontos” pretos disputavam espaço nas pernas dos moradores de Luiz Alves, no Vale do Itajaí. Eram os maruins, espécie de mosquito comum na cidade conhecida pelos bananais. Eles tomaram uma proporção tão grande que a prefeitura chegou a decretar situação de emergência neste ano. “Os municípes não suportam mais o desconforto das picadas”, dizia o documento. 

No início deste ano, infestação de maruins assustou Luiz Alves e fez a pequena cidade do Vale decretar “guerra” contra o mosquitinho (Foto: Divulgação)

 

A situação no município de cerca de 12 mil habitantes foi um prenúncio do que estava por vir. Semanas depois, Santa Catarina constatou a chegada de mais uma doença transmitida por mosquitos. A febre do Oropouche, comum na região Amazônica, teve o primeiro caso confirmado em solo catarinense em abril. Porém, o diretor da Dive-SC alerta que os diagnósticos podem ter surgido somente este ano por conta da ampliação dos testes. 

Com sintomas muito semelhantes à dengue, o olhar nunca havia se voltado ao Oropouche justamente pela gravidade, já que essa é uma doença que não leva à morte. Atrelada ao maruim, um mosquito nativo e muito presente no Estado, o controle da febre do Oropouche é mais difícil devido à forma como o vetor se reproduz. 

— O maruim precisa de matéria orgânica e áreas úmidas. Está muito associado à bananicultura, mas já está tão estabelecido que começou a atingir outras áreas, como as casas das pessoas. Até a grama cortada acumulada serve para ele se reproduzir — exemplifica o entomólogo.

Desde a confirmação dos primeiros infectados em Botuverá, Luiz Alves e Brusque, a Dive começou a mapear junto com os municípios e Ministério da Saúde o comportamento da doença. Ou seja, desde o quadro de saúde dos moradores até análises laboratoriais para descobrir os vetores, já que a transmissão ocorre não somente pelo maruim como também por outras espécies de mosquitos. 


— Não vamos ter uma ação de controle vetorial como tem com a dengue, mas quando a gente fala de Oropouche é importante estabelecer as medidas de proteção individual: manter os terrenos limpos, livres de matérias orgânicas como folhas, galhos e resíduos. Colocar telas em janelas e portas e fazer uso de repente — ressalta João. 

 

Agora, quando uma pessoa tem um quadro semelhante à dengue mas testa negativo para a doença, há a recomendação de fazer o teste para a febre do Oropouche. Com o tempo, a Dive terá um monitoramento mais consolidado sobre a situação da nova enfermidade em Santa Catarina. 

Afinal, quantas doenças precisarão surgir para que tenhamos consciência de que a culpa também é nossa?

Nos botões abaixo, confira as três reportagens da série e entenda mais sobre o impacto das mudanças climáticas em SC

Expediente

 

Reportagem: Bianca Bertoli | bianca.bertoli@nsc.com.br

Design: Ciliane Pereira | ciliane.gularte@nsc.com.br

Infografia: Ben Ami Scopinho | ben.scopinho@nsc.com.br

Fotografia: Patrick Rodrigues | patrick.rodrigues@nsc.com.br

Edição: Augusto Ittner | augusto.ittner@nsc.com.br

Publicado em 22/6/2024