Sc e os extremos do clima 2

A terra das enchentes

Santa Catarina teve nos últimos dois anos o dobro de ocorrências hidrológicas, como enxurradas e enchentes, em relação a períodos anteriores. Cidades enfrentaram nos últimos meses cheias sem precedentes, com prejuízos milionários. Mitigação e adaptação são palavras-chave de especialistas e autoridades para evitar novas tragédias

Régua do Rio Itajaí-Açu, em Blumenau, durante as enchentes de 2023

Quando Eliazar Branger, de 38 anos, saiu de casa para buscar abrigo na residência da irmã, a água batia no peito dele. Morador de Rio do Sul, o homem e a família fazem parte dos 18 mil prejudicados pela segunda maior enchente da história da cidade de 72 mil habitantes, no Alto Vale do Itajaí. O episódio em novembro do ano passado foi apenas um dos sete que se repetiram no final de 2023, algo nunca antes visto na região. 


As chuvas sem precedentes no último ano trouxeram prejuízos a Santa Catarina em patamares superados apenas pela maior tragédia climática do Estado, vivida em 2008. À época, mostram dados da Defesa Civil, mais de 2 milhões de catarinenses foram afetados pelas inundações e milhares de deslizamentos. Soterramentos mataram 135 pessoas e 78 mil ficaram desalojadas ou desabrigadas. Conforme o Atlas Digital de Desastres no Brasil, em 2008 os danos materiais em Santa Catarina somaram quase R$ 4 bilhões. Em segundo lugar está 2023, com R$ 1,5 bilhão.

 

Eliazar nasceu em Rio do Sul e como tantos outros catarinenses sabe que se o assunto é enxurrada ou enchente, não se trata de “se”, mas sim de “quando”. Ele mora às margens do Rio Itajaí-Açu e criou o próprio plano de ação para os dias em que o nível do rio sobe. O bancário e a esposa já têm uma sequência a ser seguida na hora de encaixotar os objetos, sabem para onde ir e o que erguer.

Régua do Rio Itajaí-Açu, em Blumenau, durante as enchentes de 2023

Eliazar Branger sofreu com a enchente de Rio do Sul no ano passado e, mesmo assim, colocou a mão na massa para ajudar as vítimas da tragédia no RS

Esse planejamento familiar é o primeiro conselho que o secretário da Proteção e Defesa Civil de Santa Catarina, Fabiano de Souza, dá aos catarinenses sobre o cuidado individual. A chamada autoproteção é ter conhecimento sobre quais riscos o morador está exposto no lugar onde mora e se antecipar ao problema, mapear os riscos. 

 

Eliazar, a companheira e a filha de cinco meses conseguiram sair a tempo em todas as enchentes que enfrentaram no fim do ano passado. Em novembro, a água invadiu o imóvel rapidamente, chegou a 1,60 metro no segundo andar e o bancário, que estava consertando os estragos causados pelas cheias de outubro, amargou novos prejuízos. Ele calcula, no total, R$ 50 mil em perdas materiais. Rio do Sul foi o município catarinense que mais danos privados teve por conta das chuvas em 2023, com R$ 12,8 bilhões, ainda de acordo com o Atlas.

— Mas acho que o sapo não pode ter medo da lagoa. A gente tem que se preparar, a natureza busca o que tiramos dela — opina o morador de Rio do Sul.

Novo normal

As mudanças climáticas estão por trás dos fenômenos, cada vez mais frequentes e destrutivos. Com o planeta mais aquecido devido ao aumento desenfreado dos gases do efeito estufa por conta das atividades humanas, os números e projeções da comunidade científica mostram um futuro preocupante se intervenções não ocorrerem. 

 

O inventário brasileiro de emissões de gases do efeito estufa evidenciou que cerca de 40% desse envio de poluentes à atmosfera tem origem no desmatamento, comenta a doutora e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Regina Rodrigues. A outra parcela, ainda maior, vem da queima de combustíveis fósseis. Santa Catarina não tem o próprio inventário, o que dificulta saber exatamente quais são os pontos a serem melhorados a nível estadual, comenta a especialista.

— De modo geral, o Brasil até que está bem posicionado, porque coibir o desmatamento é muito mais barato do que fazer uma transição energética — avalia Regina.

Outra unanimidade entre os especialistas são as “frentes” que precisam ser atacadas diante das mudanças climáticas: mitigação e adaptação. Na mitigação está a redução dos gases, algo maior, que precisa de políticas públicas a nível internacional, reforça Regina. Não adianta um país trabalhar na redução dos poluentes e os demais ignorá-la, já que a emissão afeta o planeta como um todo. 

 

A adaptação citada pelos pesquisadores é literalmente se adequar ao “novo normal”. Observações recentes revelam que a terra está com a temperatura 1,2ºC acima da média. É uma mudança de patamar diretamente relacionada aos ciclos dos fenômenos meteorológicos, explica o doutor e professor do Instituto Federal de Santa Catarina, Mário de Quadro.  

 

Isso significa que as alterações na atmosfera responsáveis pelos eventos extremos ocorrem de forma mais rápida e repetida. Um exemplo recente e emblemático foi o que aconteceu no Rio Grande do Sul em abril deste ano. Cidades inteiras foram destruídas por uma enchente violenta. Um estudo internacional, que teve a participação de Regina, mostrou que o volume de chuva registrado durante o período no Estado gaúcho é considerado extremamente raro, com possibilidade de se repetir a cada 250 anos.

No entanto, com o aquecimento global caminhando para os 2ºC acima da média, esse intervalo pode cair para 20 anos, o que exige que as cidades estejam cada vez mais preparadas. Não foi o caso do Rio Grande do Sul, na avaliação de Regina e outros cientistas, que apontam que todos os sistemas de adaptação falharam. 

Eliazar viu de perto o resultado disso. 

Mesmo sentindo no bolso cada cheia registrada em Rio do Sul, o homem faz parte de um grupo que atua principalmente em momentos de enchentes. Amizades que começaram por uma paixão em comum, os veículos 4 por 4, deram origem há cerca de cinco anos aos “Voluntários 4×4”, que decidiram sair do município e ampliar a rede de solidariedade para os gaúchos. Semanas atrás, Eliazar e alguns amigos juntaram doações de moradores e empresas, e seguiram para Muçum, devastada pela catástrofe no Rio Grande do Sul. 

 

— O que mais marcou foi a tristeza das pessoas. Elas não têm esperança de reconstrução— lamenta.

O que aconteceu no Rio Grande do Sul serviu como um alerta para o catarinense, que demonstrou mais preocupação em cobrar do governo projetos que evitem que o Estado passe pelo mesmo, analisa o secretário da Proteção e Defesa Civil. Porém, o papel de cada morador vai muito além disso. 

— O mundo inteiro fala em mudança climática, na Proteção e Defesa Civil a gente está falando em emergência climática. Nós estamos vivendo os extremos — diz o secretário.

Pequenas e grandes ações

A lista do dever de casa do catarinense para ao menos minimizar esses fenômenos é extensa, mas tem pontos principais que não podem mais ser ignorados. O secretário cita um deles: a cobrança sobre cada político eleito, não importa a esfera. É preciso acompanhar as políticas públicas de proteção e prevenção a desastres e torná-las prioridade em cada município. 

 

— Os desastres matam, além de gerar muito prejuízo e afetar o ambiente onde a gente vive. Com as políticas públicas sendo prioridade, as ações precisam ser integradas, principalmente no planejamento territorial e urbano — acrescenta. 

 

A ocupação em áreas de risco, reflexo do crescimento populacional e outros fatores, deixa as comunidades ainda mais expostas. Em momentos de chuvas intensas, morros desmatados e habitados irregularmente viram cenário de tragédias. Usar e ocupar o solo da forma correta, com planejamento urbano, é diminuir os impactos dos desastres no futuro, ressalta Souza. 

 

Entre as melhores políticas públicas de adaptação estão as soluções baseadas na própria natureza, comenta Regina. É proteger as áreas que nos protegem, como matas às margens dos rios, manguezais e florestas. Uma luta de gigantes, que passa pela especulação imobiliária, agronegócio e decisões políticas.

— Quem escolhe os políticos é a população. As mudanças do clima nunca são pauta, mas a perspectiva é de que esses eventos extremos continuem aumentando. Eu não sei onde é que as pessoas estão que elas ainda não entenderam isso — critica a cientista.

Mudanças comportamentais podem ser o começo da contribuição que cada um deve oferecer individualmente. É basicamente trilhar o caminho contrário do que muitos têm feito até então, como optar por transporte que não use combustíveis fósseis (bicicletas, patinetes e carros elétricos), plantar árvores nativas e reciclar o lixo. Não contribuir com o desmatamento (uma das formas é checar a origem dos produtos para se certificar de que não são provenientes de áreas devastadas), também é importante. 

 

— Se continuar desmatando, desequilibrando a questão dos gases do efeito estufa, as coisas não tendem a melhorar, só piorar — reforça Mário. 

 

Comer menos carne, optar por orgânicos sempre que possível, preferir fontes de energia renováveis, participar de mutirões de limpeza e até apagar a luz quando não há necessidade são pequenos gestos que contribuem com o todo, ressalta a diretora da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e da Economia Verde, Gabriela Brasil. 

 

A cientista e professora da UFSC, Marina Magalhães, acredita que apenas quando boa parte da população adotar essas pequenas mudanças e tomar conhecimento da necessidade em integrar as ações, além de cobrar por gestões que priorizem a mitigação e adaptação, é que os resultados podem de fato aparecer.  

Um empurrão

A gente esquentou o planeta, já estamos vendo um aumento dos extremos, então a partir de agora o que tem é a adaptação. 

 

A conclusão da professora Regina é a mesma que a equipe da Defesa Civil do Estado chegou há algum tempo. No fim do ano passado, a sequência de deslizamentos e inundações — que fez 163 cidades declararem situação de emergência em outubro — impulsionou o governo a repensar as estratégias de prevenção a desastres. 

 

A estrutura da Defesa Civil mudou e a prevenção ganhou mais atenção. Desde então, garante o secretário da pasta, projetos que estavam engavetados começaram a ser atualizados e alguns saíram do papel — a exemplo do desassoreamento do rio em Rio do Sul. Ao menos 26 foram identificados, 25 voltados para a região do Vale do Itajaí. 

— Onde já tem projeto, vamos fazer uma atualização rápida e transformar em obra. Onde não há, vamos promover os estudos para verificar cada ação. Ainda em 2024 devem ser emitidas sete ou oito ordens de serviço — contou Souza.

Fabiano de Souza, secretário de Proteção e Defesa Civil, fala sobre a importância da prevenção após as enchentes de 2023

Na outra ponta, a raiz do problema — as mudanças climáticas — está sendo tratada de diferentes maneiras pela Semae, comenta Gabriela. Santa Catarina deve contratar no próximo semestre um estudo de conformidade climática, que inclui o inventário de emissões de gases do efeito estufa, um relatório de governança, análise de riscos, normativa e um plano de ação. 

 

A transição energética, importante para a redução da emissão dos gases, ganhou uma nova atenção em maio deste ano, quando foi lançado o Programa Estadual de Transição Energética Justa, com ações a serem desenvolvidas até 2050, focadas inicialmente no Sul, região conhecida pela cadeia produtiva e energética do carvão mineral, um combustível fóssil.

 

— Várias outras ações que tratam da adaptação das cidades com a utilização de soluções baseadas na natureza também estão sendo pesquisadas. Ações como planejamento do uso territorial e possibilidades de adaptações às mudanças já existentes também são objeto de trabalho desta Secretaria — afirma a diretora. 

 

É preciso pensar globalmente e nisso as políticas públicas têm papel essencial. Porém, quando se trata de clima e meio ambiente, o primeiro passo é individual, é começar pelo micro para chegar no macro.

Qual tem sido a sua contribuição?

Nos botões abaixo, confira as três reportagens da série e entenda mais sobre o impacto das mudanças climáticas em SC

Expediente

 

Reportagem: Bianca Bertoli | bianca.bertoli@nsc.com.br

Design: Ciliane Pereira | ciliane.gularte@nsc.com.br

Infografia: Ben Ami Scopinho | ben.scopinho@nsc.com.br

Fotografia: Patrick Rodrigues | patrick.rodrigues@nsc.com.br

Edição: Augusto Ittner | augusto.ittner@nsc.com.br

Publicado em 27/6/2024