Não se trata de “se”, mas sim de “quando”. Quando será a próxima vez que vai chover tanto em um curto espaço de tempo a ponto de causar estragos em alguma cidade catarinense? Além de mais frequente a cada ano, a enxurrada é o evento climático mais destrutivo do Estado. Em quase 25 anos, foram 1,8 mil registros pela Defesa Civil, o que resultou em R$ 10,2 bilhões de prejuízos e mais de 6 milhões de pessoas afetadas.
Tecnicamente, dá-se o nome de enxurrada à destruição causada por uma chuva forte, mas de curta duração, que atinge um ponto de uma cidade. Dependendo da intensidade, a enxurrada resulta desde os já conhecidos alagamentos em ruas até grandes tragédias, como a testemunhada pelo aposentado Liberato Nichelati.
Em janeiro deste ano, uma chuva de verão se transformou em pesadelo em poucos minutos na cidade onde ele mora, Rodeio, no Vale do Itajaí. Uma casa vizinha à do homem foi arrastada por um mar de lama e pedras que se formou durante o deslizamento de um morro. Duas crianças pequenas e o pai delas, que estavam dentro do imóvel, morreram.
Naquele começo de noite, em 17 de janeiro, choveu 268 milímetros em pouco mais de duas horas, lembra o prefeito de Rodeio, Valcir Ferrari. A título de comparação, em Blumenau, a maior cidade do Vale, choveu em todo aquele mês em torno de 150 milímetros. Talissa de Oliveira, 38, mãe das duas meninas mortas e esposa de Geovani de Oliveira, 30, trabalhava no momento em que a água levou a casa deles embora. Minutos antes, conversava com o marido por mensagens de texto, por onde ele mandava fotos para mostrar a força do fenômeno, que transformou a rua em um rio.
Ao perder contato com o parceiro, preocupou-se e foi levada até o endereço onde vivia com a família. Funcionária de um supermercado de Indaial, município ao lado de Rodeio, percorreu todo o trajeto de cerca de 30 minutos de carro tentando convencer a si mesma de que estaria tudo bem, que as mensagens do esposo não chegavam porque a cidade ficou sem energia elétrica — o que de fato aconteceu — e porque ele estava ilhado. Desejava pisar na residência, tomar um banho para se refrescar e esperar a chuva passar junto às pequenas e o companheiro.
Quando chegou, porém, tudo era escuridão.
Naquele começo de noite, em 17 de janeiro, choveu 268 milímetros em pouco mais de duas horas, lembra o prefeito de Rodeio, Valcir Ferrari. A título de comparação, em Blumenau, a maior cidade do Vale, choveu em todo aquele mês em torno de 150 milímetros. Talissa de Oliveira, 38, mãe das duas meninas mortas e esposa de Geovani de Oliveira, 30, trabalhava no momento em que a água levou a casa deles embora. Minutos antes, conversava com o marido por mensagens de texto, por onde ele mandava fotos para mostrar a força do fenômeno, que transformou a rua em um rio.
Ao perder contato com o parceiro, preocupou-se e foi levada até o endereço onde vivia com a família. Funcionária de um supermercado de Indaial, município ao lado de Rodeio, percorreu todo o trajeto de cerca de 30 minutos de carro tentando convencer a si mesma de que estaria tudo bem, que as mensagens do esposo não chegavam porque a cidade ficou sem energia elétrica — o que de fato aconteceu — e porque ele estava ilhado. Desejava pisar na residência, tomar um banho para se refrescar e esperar a chuva passar junto às pequenas e o companheiro.
Quando chegou, porém, tudo era escuridão.
Talissa é uma dos quase 6,2 milhões de catarinenses que foram afetados por enxurradas entre 1991 e 2023, conforme dados da Defesa Civil do Estado. A dor dela, diferente da maioria, está relacionada a algo que não pode ser recuperado. As filhas e o marido são três das mais de 260 vítimas de enxurradas e enchentes em Santa Catarina nesse mesmo período analisado. Ambas são agrupadas pela Defesa Civil como ocorrências hidrológicas, que representam cerca de 90% dos óbitos em eventos climáticos.
Evitar essas mortes é algo que desafia a gestão pública. O prefeito de Rodeio conta que, assim como em 84% dos municípios catarinenses, a cidade possui um mapeamento de áreas de risco, mas que nenhum documento poderia preparar as equipes para o que aconteceu.
— Quando ocorre nessa proporção a gente não tem muito o que fazer. Tanto que no dia ficamos sem ação, nem os abrigos conseguimos abrir. Foi uma situação atípica, 80% da cidade afetada. Como nunca tinha sofrido algo assim, é uma coisa em que você não pensa — comenta Ferrari.
A viúva lembra que o marido teve a preocupação de perguntar sobre o terreno estar em uma área de risco quando o casal foi olhar a nova casa em janeiro. Com o imóvel perto de um morro, ele questionou ao dono da propriedade se não havia possibilidade de deslizamentos. Em Rodeio, apesar de um acordo da prefeitura com o Ministério Público impedir desde 2018 a construção de casas em áreas de risco, as antigas construções permanecem ocupadas.
— O homem disse que nunca havia acontecido nada. E ninguém esperava que ia dar tanta chuva. Foi muito rápido, de uma hora para outra, não teve como dizer “corre, sai daí” — lembra a mulher.
Ela está correta quando menciona que não havia como avisar que a enxurrada levaria a casa dela embora, já que o morro nunca deu sinais de desbarrancamento e, claro, não havia um técnico no momento da chuvarada para avaliar os riscos. Ainda que os alertas da Defesa Civil consigam precisar o bairro em que a chuva virá com mais intensidade, isso ocorre pouco tempo antes do fenômeno chegar e muitas vezes o aviso não é difundido pelo município afetado na velocidade ideal, avalia o diretor de Gestão de Desastres de Santa Catarina, Cesar Nunes.
Neste terreno ficava uma casa em que estavam pai e duas filhas, todos mortos pela enxurrada
— [A chuva de 17 de janeiro em Rodeio] pegou todo mundo de surpresa. Fico pensando que se tivesse sido de dia teria morrido muito mais gente. Uma creche ficou inundada em mais de um metro e meio até o muro cair e a água escoar — cita o prefeito.
Esse, inclusive, é um detalhe sobre as enxurradas. Elas normalmente ocorrem entre o fim do dia e à noite porque a umidade é mais alta nesse período, detalha a meteorologista do Centro de Informações de Recursos Ambientais e de Hidrometeorologia (Ciram), Maria Laura Rodrigues. Como a chuva precisa de umidade para se formar, quanto maior ela for, mais chance de a precipitação ser intensa.
Apesar de historicamente causar mais estragos na região do Vale do Itajaí (a perda anual média na bacia hidrográfica do Itajaí-Açu é de R$ 245 milhões, enquanto nas demais bacias varia de R$ 700 mil a R$ 23 milhões), o risco de enxurrada não está isolado em um ponto de Santa Catarina. Na avaliação da Defesa Civil, áreas em Araranguá, Tubarão (Sul), Vale do Itajaí, Irani (Oeste) e Vale do Itapocu (Norte) são as mais propensas ao fenômeno.
A casa onde Talissa morava com o marido e as filhas Melissa, de quatro anos, e Helena, de um ano e meio, ficava em uma região rural de Rodeio. Geovani e Talissa se mudaram para o pequeno sítio 10 dias antes da enxurrada. O homem recebeu a proposta de se tornar caseiro e ficou apaixonado pelo local. Entre vales, em uma estrada de barro, com um córrego de água transparente do outro lado da rua, o casal jamais imaginou o que poderia acontecer.
Mesmo meses depois do ocorrido, o morro agora partido ao meio perde parte do barro em quedas menores, quase imperceptíveis, como se uma ferida ainda aberta sangrasse aos poucos. É a mesma comparação feita por Talissa ao descrever o luto de quem deixou marido e filhas em casa ao ir trabalhar e, ao retornar, não encontrou absolutamente nada.
— É muito forte o que está acontecendo. Tem dias que sinto mais, dias que sinto menos. Mas todo dia eu sinto — desabafa.
A casa onde Talissa morava com o marido e as filhas Melissa, de quatro anos, e Helena, de um ano e meio, ficava em uma região rural de Rodeio. Geovani e Talissa se mudaram para o pequeno sítio 10 dias antes da enxurrada. O homem recebeu a proposta de se tornar caseiro e ficou apaixonado pelo local. Entre vales, em uma estrada de barro, com um córrego de água transparente do outro lado da rua, o casal jamais imaginou o que poderia acontecer.
Mesmo meses depois do ocorrido, o morro agora partido ao meio perde parte do barro em quedas menores, quase imperceptíveis, como se uma ferida ainda aberta sangrasse aos poucos. É a mesma comparação feita por Talissa ao descrever o luto de quem deixou marido e filhas em casa ao ir trabalhar e, ao retornar, não encontrou absolutamente nada.
— É muito forte o que está acontecendo. Tem dias que sinto mais, dias que sinto menos. Mas todo dia eu sinto — desabafa.
Se conviver cada vez mais com esses fenômenos é a única certeza que os catarinenses têm, como então amenizar os estragos e tragédias causados por eles?
Para a professora e engenheira sanitarista do Instituto Federal de Santa Catarina em Florianópolis, Maurília de Almeida Bastos, os municípios precisam pensar em uma infraestrutura que seja capaz de proporcionar o correto escoamento de tanta água. A prática serve também para empreendimentos. Na hora de construir, é necessário adotar ações que minimizem o impacto ambiental da obra.
— As cidades só crescem, crescem… Não dá para esperar acontecer para ir atrás. Precisa planejar, executar e fazer a manutenção dessas medidas estruturais — explica a doutora.
Entre as medidas não estruturais está o controle de moradias irregulares, já que os imóveis em áreas de risco são os mais atingidos nessas tragédias.
— É uma questão que está acima da política. Tem que ser de interesse de todos, porque quem mais sofre é a grande massa.
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que atinge Santa Catarina e o impacto de cada um deles
e por que eles ocorrem no nosso Estado
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Expediente
Reportagem: Bianca Bertoli
Imagens: Patrick Rodrigues, Tiago Ghizoni, Ulisses Job, Daniel Conzi, Diorgenes Pandini, Artur Moser, Gabriel Lain, Juliano Zanotelli, Guto Kuerten, Alvarelio Kurossu, Sandro Scheuermann, Jandyr Nascimento, Adelor Schuster, Diego Redel, Sirli Freitas, Leo Munhoz, Jessé Giotti, Max José Koche, Marcia Zenf, Ricardo Duarte, Claudio Silva
Design e desenvolvimento: Ciliane Pereira
Pesquisa e infografia: Ben Ami Scopinho
Edição: Augusto Ittner