Enchentes são velhas conhecidas de Santa Catarina, mas nem por isso episódios deixam de ser destrutivos e, por vezes, com detalhes incontroláveis

Em uma propriedade rural de Tubarão, no Sul de Santa Catarina, a vida simples em uma casa de madeira, perto de um pequeno córrego de água cristalina, rodeado de mata nativa e plantações, era tudo que Diciomar de Oliveira e os quatro irmãos precisavam para ser felizes. Crianças, divertiam-se no riacho em dias quentes e pescavam pequenos peixes em uma época em que a alimentação era limitada ao que vinha da roça. 

 

O ano era 1974. Nem mesmo eles, que viviam na tranquilidade do campo, escaparam da enchente mais fatal que se tem registro em Santa Catarina. O córrego transbordou, avançou em direção ao imóvel que Diciomar vivia com a família e assustou. O casal e os cinco filhos seguiram para a casa da avó paterna do então menino de sete anos. Ela vivia no mesmo terreno, mas em um ponto mais alto, em um morro.

 

A família escapou da inundação, mas na manhã seguinte um deslizamento pegou todos de surpresa. A residência dos avós de Diciomar foi totalmente destruída por uma avalanche de lama e pedras. Ele ficou embaixo da terra, mas conseguiu ser retirado com vida por um parente. Os pais morreram, assim como outros dois irmãos dele.

— Uma enchente você consegue acompanhar o quanto a água sobe, tem o recurso para sair. No deslizamento não. É um tapa na cara, de repente — lamenta Diciomar.

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Marcas na história

No perfil histórico de desastres de Santa Catarina, as enchentes têm destaque. São histórias que se repetem praticamente todos os anos, principalmente na região do Vale do Itajaí. Junto com a enxurrada, as cheias resultam no maior número de mortes, desabrigados e desalojados, além de trazer prejuízos públicos mais expressivos em relação a outros eventos. 

 

A enchente é parte da rotina de quem vive no Vale do Itajaí “desde sempre”. O Arquivo Histórico de Blumenau revelou uma carta do fundador da cidade de 1848 em que ele conta à família na Alemanha sobre as inundações: “Com a chuva, o nível do rio sobe muito, chegando às vezes a elevar-se até 24 pés em três dias”. 

 

Em 1983, o município passou semanas com as ruas alagadas por conta de uma das cheias mais devastadoras da história de Blumenau. No ano seguinte, de novo. Em 2008, a inundação foi marcada pelos destruidores deslizamentos de terra que mataram 24 blumenauenses. Ao todo, só no município foram 97 enchentes desde a colonização. 

Recomeço

Com a morte dos pais, Diciomar foi criado pelos tios que perderam as três filhas no mesmo episódio. Da família dele, 25 pessoas morreram, porém alguns corpos jamais foram encontrados. Conforme a Defesa Civil estadual, oficialmente foram identificadas 199 vítimas fatais na enchente de 1974 em Tubarão.

 

Desde então, o cabeleireiro evita morar em morros ou próximo a eles — e também longe de rios. Passou muitos anos se preocupando quando a chuva chegava, com medo de reviver o trauma da infância.

Chuvas persistentes

Como tudo relacionado ao clima, não é apenas um fator que explica essa característica de Santa Catarina ter tantos registros de chuvas persistentes que resultam em enchentes (foram cerca de 470 registros entre 1991 e 2019, segundo balanço da Defesa Civil). 


É preciso considerar o aquecimento global, lembra o meteorologista do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), Mário Quadro. Com a temperatura mais elevada, a instabilidade na atmosfera aumenta, o que gera chuvas mais intensas. 


Além disso, acrescenta a meteorologista do Centro de Informações de Recursos Ambientais e de Hidrometeorologia (Ciram), Maria Laura Rodrigues, por conta da localização geográfica as frentes frias passam pelo Estado com frequência que chega a ser semanal. As frentes frias, diferente do que o nome sugere, são responsáveis por trazer as chuvas. 


A extensa faixa litorânea de Santa Catarina também explica a condição. Essas precipitações persistentes em geral são associadas à umidade do mar, que avança em direção ao continente e dá origem a nuvens carregadas, complementa a meteorologista da prefeitura de Blumenau, Tatiane Martins.

— A umidade do mar é chave tanto para os eventos de enxurradas quanto para a enchente. O Vale do Itajaí está próximo do Litoral, o que facilita o transporte da umidade do mar. Isso acaba gerando volumes maiores de chuva — diz Tatiane.

Não por coincidência, a região que mais sofre com as cheias é o Vale do Itajaí (próximo ao mar e com relevo propício para deslizamentos), que conforme cálculos da Defesa Civil tem uma média de prejuízo anual de R$ 50 milhões por conta das inundações. Ainda assim, complementa o órgão, o risco de enchente é “bem distribuído em Santa Catarina”.

O temido El Niño

Não bastasse todos esses fatores que tornam Santa Catarina um estado propenso a chuvas, há um fenômeno de importante influência: o El Niño. O aquecimento anormal do oceano pacífico é apontado como o responsável por trazer chuvas mais frequentes, já que esse comportamento altera as pressões atmosféricas pela troca de calor. O La Niña, que é o resfriamento das águas, é marcado pelo contrário.

 

— Ao ficar mais quente, o contraste é maior, por isso tem mais chuva. No La Niña o contraste é menor, então no geral tem menos chuva, mas não quer dizer que não vá haver eventos extremos — explica o meteorologista Mário Quadro.

No primeiro ano do El Niño, as estações mais chuvosas são a primavera e o verão. No segundo ano, o maior impacto é no inverno.

Esses fenômenos que modificam a dinâmica atmosférica ocorrem de tempos em tempos, com períodos de neutralidade entre eles. O El Niño preocupa porque as águas ficam mais quentes em meio ao aquecimento global. Em outras palavras: os impactos já conhecidos do fenômeno são amplificados pelas mudanças climáticas vividas no mundo inteiro.

Recomeços

Um estudo feito pela Defesa Civil catarinense mostra que as enchentes são mais comuns entre outubro e março, com destaque para novembro, quando há os maiores prejuízos contabilizados. O episódio de Tubarão foi em março, depois de dias de chuvas persistentes. 

 

Desde então, Diciomar tentou reescrever a própria história. Saiu da lavoura dos tios quando chegou à fase adulta, fez cursos, tornou-se um cabeleireiro conhecido na cidade, teve filhos e hoje leva a vida com leveza. 

 

O sítio que tanto amava quando criança não lhe traz boas memórias. Por muito tempo, ia até o local acender uma vela em uma enorme pedra que acreditava ter sido a responsável por esmagar a casa em que estava, mas abandonou o hábito ainda adolescente. Decidiu deixar o passado para trás.

Passado, presente e futuro

Olhar para o que passou é combustível para a gestão pública pensar no futuro e evitar grandes tragédias. O diretor de Gestão de Desastres de Santa Catarina, Cesar Nunes, ressalta que, já que o Estado tem essa característica de eventos extremos, é preciso combinar uma série de ações para preservar vidas e amenizar as perdas econômicas. 

 

— Entre as quais a conscientização de medidas de proteção, de levantamento de risco, de estruturação de Defesa Civil e assim por diante. Isso tem prazo para ser feito, depende de recursos, de capacitação e às vezes de políticas específicas [mudança em leis] — pondera. 

 

O que deveria ser feito “para ontem”, na visão do diretor, é a estruturação permanente de comissões ou coordenadorias municipais de Defesa Civil, com profissionais capacitados e que não variem de acordo com cada mandato. Além de Santa Catarina ter cidades sem Defesa Civil, menos de 25% têm projetos de prevenção e preparação para desastres e apenas 2% tem um plano de redução de riscos. 

 

Em nível estadual, o órgão trabalha para atuar nas bacias hidrográficas com os maiores problemas com inundações. Para atender a principal delas, do Itajaí-Açu, está em andamento a construção de uma nova barragem em Botuverá, no Médio Vale do Itajaí. O Alto Vale deve receber outras três em Mirim Doce, Petrolândia e Trombudo Central, lembra o secretário de Estado da Proteção e Defesa Civil, Luiz Armando Schroeder. 

 

Esses projetos já foram aprovados e têm verba assegurada, mas é preciso ampliar a atenção a essa questão essencial quando se fala em enchentes, já que as barragens têm a capacidade de ajudar no controle de uma cheia justamente pela função de retenção da água.  

 

— Pretendemos entrar em outras áreas, como a bacia [do rio] de Tubarão e vamos deixar prontos projetos para as demais bacias — promete o secretário.

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Expediente

Reportagem: Bianca Bertoli
Imagens: Patrick Rodrigues, Tiago Ghizoni, Ulisses Job, Daniel Conzi, Diorgenes Pandini, Artur Moser, Gabriel Lain, Juliano Zanotelli, Guto Kuerten, Alvarelio Kurossu, Sandro Scheuermann, Jandyr Nascimento, Adelor Schuster, Diego Redel, Sirli Freitas, Leo Munhoz, Jessé Giotti, Max José Koche, Marcia Zenf, Ricardo Duarte, Claudio Silva
Design e desenvolvimento: Ciliane Pereira
Pesquisa e infografia: Ben Ami Scopinho
Edição: Augusto Ittner

Publicado em 12/6/2023