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Os Kaingang e o destaque feminino na luta por terras

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Era início do século 20, quando a Terra Indígena Xapecó foi demarcada pelo então governo do Paraná.

Hoje, são 16 aldeias espalhadas pelos 15.623.95 hectares, onde vivem cerca de 5 mil Kaingang e algumas famílias Guarani. A terra fica no cruzamento dos rios Xapecó e Chapecozinho, entre os municípios de Ipuaçu e Entre Rios, a aproximadamente 70 quilômetros de Chapecó. 

A conquista das terras, a partir de decreto governamental, foi um marco. Inicialmente, eram 50 mil hectares, mas ao longo do século 20, a Terra Indígena Xapecó, que atualmente pertence a Santa Catarina, foi reduzida para cerca de 16 mil hectares. Ao mesmo tempo, muitos grupos Kaingang não aceitaram o aldeamento na TI Xapecó, preferindo permanecer nos locais de origem ou procurando refúgio em regiões de difícil acesso. 

 

Os Kaingang pertencem à família linguística Macro-Jê e tem uma concepção de mundo expressada nos clãs ancestrais Kamé e Kairu. É uma dualidade, um sendo a metade do outro: Kamé (marca cumprida, é o sol) e Kairu (marca redonda, é a lua). Neste mito, os heróis culturais Kamé e Kairu produzem não apenas as divisões entre os homens, mas também a divisão entre os seres da natureza. 

A expressão sociológica mais forte desta concepção dualista é o princípio da exogamia entre as metades. Seguindo a tradição, os casamentos devem ser realizados entre indivíduos de metades opostas: os Kamé devem casar-se com os Kairu, e vice-versa. 

Colonização, perda de território e destaque feminino

Com o intenso processo de colonização no Oeste de SC durante a primeira metade do século 20, os originários passaram a enfrentar dificuldades — principalmente, por causa da ação de empresas que eram responsáveis por dividir e ocupar o território. Com isso, o povo Kaingang começou a se espalhar por diferentes municípios e até hoje segue em luta pelo próprio espaço.

 

Um dos principais exemplos dessa colonização é a invasão do território Kaingang do Toldo Chimbanguem, na década de 1940. As terras foram compradas pela empresa Luce Rosa & Cia, que as revendeu aos colonos. Por quase 50 anos, os Kaingang ficaram fora da região —  alguns, inclusive, acamparam nas margens do Rio Irani.

  

Na década de 1970, eles se organizaram em uma luta pela retomada das terras. Pediram demarcação da área e após 16 anos, em 1986, conseguiram 988 hectares, metade do que foi solicitado. Em 2006, foram homologados mais 954 hectares. 

 

A luta pela terra no Toldo Chimbangue, no começo da década de 1980, inaugurou novo modelo de demarcação de terras indígenas no Brasil, segundo o professor e doutor em História Cultural Clovis Brighenti. O pesquisador explica que se trata da primeira comunidade indígena no país que conseguiu recuperar as terras que estavam completamente perdidas, e já sob posse de agricultores munidos de títulos de propriedade. 

Brighenti destaca ainda a efetiva atuação das mulheres Kaingang na luta por terras. Ele explica que a ação feminina não se deu pela ocupação de cargos de liderança politicamente legitimada, a exemplo dos caciques e vice-caciques, mas tendo mulheres como Ana da Luz Fortes do Nascimento, a Fen’nó, como uma das principais lideranças e responsável pela conquista do território. 

 

Fen’nó, nome Kaingang que significa “Arma, flecha em pé”, consolidou-se como referência sem nunca ocupar cargo de cacique. Do alto de seus 1,50m de altura, foi a grande articuladora do movimento de reivindicação territorial que possibilitou o pleito fundiário, a identificação das terras, a constituição e a fixação geopolítica do grupo. 

 

Pelo assento do batismo em 18 de janeiro de 1917, na comunidade de Passo Bormann, ainda hoje distrito de Chapecó, Ana da Luz era filha do casal de Kaingang Alfredo e Julia Fortes. O registro dá conta que ela tinha quatro meses de vida, e o batismo celebrado por Frei Gaspar Flesch, OFM, tendo sido padrinho o tio materno, Gregório Rodrigues, que aparece no registro com o apelido “Gregório Pedelurio”. 

 

Fen’Nó nasceu e morreu nas terras do Chimbangue e, mesmo com o avanço da frente colonizadora, nunca saiu do lugar de origem. Aliás, saiu, sim: andou por Florianópolis e Brasília lutando pela terra onde está enterrada, depois de ancestralizar, em 2014, aos 97 anos. 

Outra liderança importante que ajudou a retomar o Chimbangue foi a anciã Maria Celestrina Rodrigues, de 92 anos. Ela relembra das lutas e da época que passou 13 dias em Brasília: 

 

– Foi bem difícil, a gente ficou num acampamento, comia e dormia ali mesmo. Mas deu certo, pois hoje minha família e os amigos vivem aqui ao redor da minha casa.

 

Mãe de lideranças importantes na comunidade, ela tem a roça com batata doce e aipim, cuida das galinhas e conserva boa memória: 

 

– Meu pai foi morto por um tigre. Herdei dele valores e carrego esperança – conta, sentada ao lado do fogão a lenha, enquanto fazia o palheiro de fumo de palha de milho, que aprendeu com o avô. 

Visibilidade às necessidades das comunidades indígenas

Iara Campolin é professora de Educação Física na Escola Indígena de Ensino Fundamental Fen’Nó, mora no Toldo Chimbangue, a 30 quilômetros de Chapecó, onde também cursa Pedagogia. Aos 32 anos, é casada, duas vezes mãe e tornou-se a primeira mulher indígena a ocupar uma cadeira na Câmara de Vereadores de Chapecó.

 

Na eleição de 2020 somou 361 votos. Eleita suplente do vereador Valdir Carvalho (PT), assumiu a titularidade em outubro de 2021 num período de 45 dias em que o titular se afastou. Iara tornou-se a primeira indígena a representar uma etnia em 104 anos de história do Legislativo do município: 

 

– Meu trabalho foi o de tentar dar visibilidade às temáticas relacionadas às necessidades das comunidades indígenas locais, como espaços de lazer, sinalização da rodovia que corta nosso território (SC-283) e mais vagas para a Educação Infantil. 

 

É dela a ideia de criar um espaço na área central da cidade onde os indígenas possam desenvolver a cultura, com dança e música, e expor a produção, como artesanato, ervas medicinais, comida típica. A expectativa é de que como titular da vaga possa retomar a sugestão. 

 

No geral, Iara considera que a respeito desses temas foi bem aceita pelos colegas de parlamento. O que já não aconteceu quando apresentou uma proposta de construção de uma estátua na área central da cidade. O monumento seria uma homenagem à Ana Maria da Luz, a Fen’Nó, que dá nome a escola onde Iara dá aulas para crianças e adolescentes. 

 

– Isso me deixou muito triste. Lembro que fui chorando da Câmara de Vereadores até a aldeia. Nossa ideia era fazer uma estátua que mostrasse para as pessoas o papel desta mulher que andou por Brasília e outras cidades lutando pela retomada do Chimbangue – conta. 

 

Iara recorda que a reprovação teve como argumento os custos para os cofres públicos. 

 

– Ali sim, acho que foi preconceito com a questão indígena. Mas achamos que não deveria, pois a gente sempre esteve aqui, mesmo antes da chegada do colonizador, e até o nome da cidade é indígena – pondera. 

 

No perímetro urbano de Chapecó, existe, desde 25 de agosto de 1981, uma homenagem aos desbravadores. Criado pelo artista plástico Paulo de Siqueira, mostra a figura de um gaúcho empunhando um machado, como símbolo do trabalho. Na mão esquerda, um louro lembra a conquista e a vitória. O monumento possui 14 metros de altura, 5,70 metros de largura e pesa nove toneladas. A obra é um cartão de visitas e ponto de identificação da cidade. 

 

De acordo com a assessoria de imprensa da Câmara de Vereadores de Chapecó, a moção de apelo ao prefeito para a construção da estátua foi retirada de pauta porque o mandato da suplente se extinguiu. A assessoria informa que a própria vereadora, quando em exercício, deixou sobrestado (sem andamento) no período em que exercia o mandato e isso teria feito com que a moção nem entrasse em votação.

 

Valorização da cultura Kaingang

Kuché, em Kaingang, é o nome de João Batista Antunes, 42 anos. A escolha, herança do avô materno, refere-se à Irapuá, uma abelha sem ferrão, escura, reluzente e que costumava fazer moradia no alto dos pinheiros. Formado em Língua Portuguesa pela Unochapecó, ele é diretor na Escola Indígena de Ensino Fundamental Fen’Nó. 

 

Educador empenhado na defesa da escola enquanto espaço de retomada dos valores da cultura de um povo, João Batista entende o lugar como oportunidade para se dar vida a algo que “foi colocado pedra em cima e esquecido por um tempo”: as práticas culturais. Com tradição oral, os Kaingang careciam de um registro de suas próprias vozes acerca da retomada histórica do território. 

 

– Era preciso ter algo materializado que se pudesse apresentar para as pessoas. Isso para mostrar que não é simplesmente uma narrativa oral – conta João Batista, enquanto mostra um exemplar de “Coleção Guerreiras Kaingang e Memórias dos Anciões do Toldo Chimbangue”, editado em 2019, numa parceria entre Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), governo do Estado e Ministério da Educação. 

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O livro reúne em formato de cordel o que os alunos recolheram das mulheres entrevistadas e é ilustrado com desenhos dos estudantes. Um dos cordéis foi inspirado na fala de Paulina Antunes, mãe de João Batista, e que na primeira década de 2000 foi vice-cacique:

 

“Tinha apenas três anos, quando aqui vim pra morar, era muito criança, mas neste lugar eu vim parar…Fui roubada por meu pai, que do Rio Grande do Sul fugiu, encontramos tia da Luz (Fen’No), morando na beira do rio…”. 

 

O diretor considera que o livro é também um reconhecimento à coragem feminina: 

 

– Estou com 42 anos e quando criança vi as mulheres como trincheiras à frente dos homens e dizendo para a polícia: “Para bater neles, antes terão que bater em nós”. Nas famílias é igual: as mães se jogam na frente de qualquer coisa para defender um filho – ressalta. 

 

Historicamente, diz João Batista, “nossa cultura é bem machista”. Para contrapor a isso, foi elaborado um regimento interno determinando sobre a presença de mulheres nos poderes de organização da comunidade, podendo ser cacique ou vice-cacique: 

 

– É como diz o branco: ela (mulher) pode ser o que quiser. 

 

O tema igualdade de gênero também está presente na sala de aula. A inspiração é Fen’Nó: na figura dela, os alunos aprendem a valorizar as mulheres.

“Reafirmação da nossa identidade”,
diz mestre em Educação

Adroaldo Antônio Fidelys, ou Duko Vãnfy, na Língua Kaingang, é mestre em Educação. Ele dá aulas de Filosofia e História na escola indígena do Toldo Chimbangue. No idioma mãe, o nome significa semente de taquara. Em agosto do ano passado, ele defendeu tese na Unochapecó intitulada “(Re) existência e luta da história e memória do Toldo Chimbangue-SC: os saberes Kaingang enquanto possibilidade de formação no espaço escolar”. É o quarto Kaingang do Oeste de Santa Catarina a obter o título de mestre em Educação. 

 

– Como professor procuro passar para meus alunos conceitos como a reafirmação da nossa identidade e fico muito feliz quando percebo que isso aconteceu. Tenho um nome que me identifica com os povos originários, e este batismo, feito pelos meus pais e anciões, faz com que todos os dias eu procure ser semente. Faço isso desde que assumi esta militância em defesa dos nossos direitos – diz o professor. 

 

Adroaldo levou para a academia as próprias vivências. Quando menino, aprendeu os princípios do povo, como o respeito ao outro e com a natureza. Como professor, explica, se esforça para levar aos alunos as mesmas inspirações que os kofás (idosos) trouxeram de antigamente: 

 

– Nossa cultura Kaingang é feita pelo meio oral, e a gente deve absorver o que nos é passado. Ao mesmo tempo, por mais engessado que seja o sistema educacional, a escola precisa ser mantida como espaço de luta e de resistência. Precisamos seguir formando multiplicadores dos conhecimentos indígenas e militando em prol da nossa causa e comprometidos ao contexto social contemporâneo. 

 

No espaço escolar, o professor desenvolve projetos culturais como oficinas de artesanato, culinária indígena, canto e dança. Quando lhe é perguntado se é difícil ser indígena no momento atual, responde: 

 

– Assim como para qualquer outra comunidade, seja indígena, não indígena, quilombola ou ribeirinha. Nós ou todos nós, temos as mais variadas dificuldades. Acredito que a educação, maior arma contra a ignorância, seja um dos meios de luta contra esta realidade. 

Foi Adroaldo quem sugeriu o lugar desta entrevista. Junto com a mulher, Ariany Sales, e uma das filhas, Yamini Pótánh, ele nos levou às margens do Rio Irani. Era uma noite fria, em 23 de maio. Chegamos antes das 18h. Naquele dia o sol caiu rápido, fez-se noite na mata e uma fogueira iluminou nossa roda de conversa. A escolha do lugar tinha uma simbologia. Foi naquele espaço distante da aldeia, do outro lado da margem, que se iniciaram as lutas pela retomada do território do Toldo.

 

– Estamos num espaço sagrado. Daqui partiram os primeiros gritos de socorro, os primeiros escritos para que os órgãos responsáveis pela questão fundiária da época reconhecessem o nosso direito – ensina. 

 

Adroaldo conta que as poucas famílias que iniciaram a luta não seriam suficientes para fazer as frentes de batalha. Então, buscaram apoio de indígenas de outras terras: 

 

– Os parentes apareceram e se incorporaram. 

 

Passava das 22h30min quando encerramos a conversa. Pedaços de bracatinga estalavam no fogo. Adroaldo, que havia ficado alguns minutos em silêncio, puxou um canto em Kaingang. O grito ecoou no silêncio da mata. Era uma saudação aos espíritos feitas por Duko Vãnfy, o homem que enverga o nome de semente de taquara. 

NAVEGUE ENTRE AS ETNIAS

GUARANI

 

 

KAINGANG

 

 

 

XETÁ

 

 

 

XOKLENG

 

 

 

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Expediente

Reportagem: Ângela Bastos

Imagens: Patrick Rodrigues, Sirli Freitas e Tiago Ghizoni

Edição de vídeo: Luiza Monteiro e Bianca Anacleto

Roteiro de vídeo: Carolina Marasco, Eduarda Hillebrandt e Raphaela Suzin

Design: Ciliane Pereira

Edição: Everton Siemann e Raphaela Suzin

Edição SEO: Carolina Marasco

Publicado em 03/12/2022