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Os Guarani, a maior nação indígena que já existiu na América do Sul

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Os Guarani formaram a maior nação indígena que já existiu na América do Sul, ou do Sol, como gostam de dizer. Há pelo menos 2 mil anos, eles têm a maior presença territorial do continente. No século 16 somavam 2 milhões. Hoje são cerca de 280 mil, espalhados por países como Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia. Em solo brasileiro, seriam 51 mil; já em Santa Catarina, 2 mil. 

 

O novo censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em andamento, vai conseguir estimar a população indígena no país. No Estado, os Guarani encontram-se em aldeias no Litoral, Meio-Oeste, Oeste e Extremo-Oeste. Em algumas terras indígenas, existem famílias Guarani compondo espaços com Kaingang e Laklãnõ-Xokleng em áreas demarcadas para estas etnias. Eles também são acolhedores: há famílias de outros povos nos territórios dos Guarani.  

 

Além de viverem em Santa Catarina, encontram-se no Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Pará. Dividem-se em três subgrupos: Ñandeva e Mbya (Sul) e os Kaiowá (Mato Grosso). Independente do lugar, eles têm em comum língua, história, cultura, cosmovisão. São agricultores e também sobrevivem da venda do artesanato nas áreas urbanas. 

Tekoa, oka e opy: as aldeias Guarani

As aldeias Guarani não são muito numerosas. Quase sempre ocupadas por poucas pessoas que se juntam para formar uma família extensa. Selado por laços de parentesco, o agrupamento tem como principais características a relação com o território chamado de Tekoa. Os terrenos seguem uma espécie de desenho comum: casas, áreas de plantações e/ou de floresta, a oka (destinada para atividades comunitárias) e a opy (casa de reza). 

 

É na opy que as figuras dos anciãos e das anciãs se destacam com os saberes e conselhos — é onde se ritualiza a contação de histórias sobre origem, tradições e costumes. Para eles, o desconhecimento da própria história e o distanciamento dos parentes colocam em risco o próprio modo de vida, assim como a convivência urbana. Eles entendem também que o ritmo da cidade os afastam da cultura. 

O dilema entre comidas típicas e produtos industrializados

Floriano da Silva é um dos 180 moradores  da Terra Indígena Guarani Tekoa Marangatu, em Imaruí, a 115 quilômetros ao Sul de Florianópolis. Orientador educacional na escola da comunidade, é formado em Licenciatura Intercultural do Sul da Mata Atlântica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Na faculdade, pesquisou o comportamento de crianças e jovens indígenas diante da alimentação tradicional e os apelos dos produtos industrializados.

 

– Os xeramoi [lideranças mais velhas] estão preocupados, pois nossas crianças estão perdendo o costume do uso de alimentos produzidos na roça – diz Silva. 

 

Há um dilema. Os mais velhos ensinam que as comidas típicas são sagradas, fornecidas por Nhanderu, o deus supremo, não apenas para saciar a fome, mas também para auxiliar no fortalecimento físico, mental e espiritual. Principalmente o alimento à base de milho. Os Guarani entendem que a doçura do milho no corpo e na alma torna as pessoas dóceis, fortes, justas e saudáveis. Já os jovens são desafiados a novos hábitos alimentares. 

 

Esta complexidade pode ser vista na escola. A merenda, fornecida pelo Estado e município, inclui macarrão, arroz, feijão, açúcar, café, farinha de trigo, fubá, carnes. Inicialmente, eram inseridas também abóbora, batata-doce, leguminosas. Mas os educadores perceberam que os alunos praticamente não comiam. 

 

– A gente trabalha com professores, alunos e famílias para mudar esta mentalidade e manter a nossa alimentação tradicional – comenta o orientador educacional. 

 

Algumas iniciativas dão resultados. Famílias cuidam de uma horta comunitária, onde o cultivo é orgânico, e são organizados canteiros com ervas para chás. Em 2016 foi construída uma padaria, resultado do Programa SC Rural com apoio do Banco Mundial e parceria da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri). Nos pães e biscoitos são inseridos produtos cultivados nas roças, como batata doce, aipim, milho. 

 

A ideia veio dos próprios indígenas para reforçar a alimentação nas casas e na merenda escolar, além de beneficiar as famílias com geração de renda e um pão mais saudável. 

Preservar a língua é ponto principal, inclusive nas redes sociais

Na Marangatu, Fabiano Alves é chamado de Karai, que significa homem sábio. Graduado em pedagogia, ele é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), onde pesquisa o modo de viver Guarani. O campo de trabalho do primeiro aluno indígena do programa é a aldeia onde vive. O trabalho foca na religião, nos costumes, na língua: 

 

– Para nós, tudo está interligado. Dentro da nossa cosmologia, a espiritualidade e o meio ambiente estão interligados – conta Alves. 

 

Ele explica que, com o trabalho, pretende indicar à sociedade a cultura milenar do povo indígena e mostrar que, apesar dos desafios, ela está sendo mantida: 

 

– A gente valoriza a nossa língua, a tradição, a comida, a música. Tudo isso faz parte do nosso modo de ser e de viver. 

 

Para ele, a “preservação da língua Guarani é o ponto principal”. Por isso, dentro da aldeia, eles “sempre falam em Guarani” — começa com as crianças e segue com os jovens e anciãos. Ele entende que, dessa forma, a comunidade resguarda a identidade, inclusive nas redes sociais. 

 

– A gente tem grupos nos aplicativos [de mensagens], mas segue com a nossa essência. Tem gente que acha estranho e diz que os indígenas não são mais os mesmos, mas nós não entendemos assim e, como as outras pessoas, usamos a tecnologia em nosso favor. 

 

Para o pesquisador, este pensamento sobre o impacto das redes sociais no modo de vida indígena revela preconceito: 

 

– Se a gente usa celular, dizem isso. Se a gente não usar, dizem que estamos atrasados. O mesmo vale para o vestuário. Se usamos certas roupas, é porque não somos mais como antes. Mas por acaso a gente vai andar sem roupas, como era no começo? – questiona. 

Rituais para benzer alimentos e batizar crianças

Nas andanças pelas aldeias, se aprende muito: os Guarani, por exemplo, para verem a terra, olham para o céu. Esta leitura dos movimentos celestes é conhecida como Etnoastronomia. Com esta interpretação, eles elaboram o calendário cosmológico, o chamado Apyka Miri — que conta a passagem do tempo, marca o clima, ensina o momento certo para plantar, pescar, extrair o mel. Tudo em sintonia com Nhanderu Tenonde (o Pai Criador) e com Nhamandu (o Pai Sol).

 

Esta conexão entre astronomia e religião dá suporte à agricultura guarani e permite rituais como o Nhemongaraí, quando ocorre o benzimento de alimentos e das sementes, e batizados de crianças.

 

A reportagem acompanhou um desses momentos na Tekoá Yynn Moroti Wherá, a Aldeia Reflexo da Água Cristalina. Com 59 hectares, a M’Biguaçu está homologada e demarcada. Cortada pela BR-101 e próxima ao bairro São Miguel, no município de Biguaçu, a aldeia é dos Guarani Mbyá, que na língua Guarani significa gente. A presença de não-indígenas neste lugar sagrado é incomum. Tivemos a autorização prévia das lideranças espirituais e políticas. 

 

Era manhã de 16 de maio, temperatura em torno de 12°C, quando chegamos para testemunhar o ritual. Devido à sacralidade da relação com os alimentos, os moradores se juntaram para celebrar o plantio do milho. O cenário foi a Opy, a casa de reza, com suas paredes cobertas de barro e de palha. Eles acreditam que o barro impede que espíritos ruins entrem na Opy, que se pronuncia Opã. 

 

A construção da Opy leva em conta o lugar onde o sol nasce, a morada de Tupã. O acesso se dá apenas por uma porta. O espaço ficou cheio para o ritual. A participação das crianças é muito valorizada. Por serem consideradas mais puras, acredita-se que tenham maiores condições de receber palavras e conhecimentos do pai Nhanderu. A casa tem chão de terra batida. Mais tarde, assim como os adultos, alguns meninos fumariam o petynguá, cachimbo sagrado para os Guarani.

No centro da Opy, fica uma fogueira acesa. As cepas de madeira queimavam lentamente. É um dos principais elementos da sessão: produzir o fogo que alimenta as ervas dos cachimbos. Espigas colocadas sobre uma espécie de altar, onde recebiam o fumacê dos rezadores, acompanhados de rezas e cânticos puxados pelo coral Yvÿtcï Ovy (Nuvens Azuis). 

 

O som do mbaraka (chocalho) e o violão entoavam forte. Entre os Guarani existe uma divisão sobre quem toca o quê. É mais comum para homens instrumentos de cordas e o tambor, enquanto o takuapu, o bastão, que tem simbolismo ligado à fertilidade, ser de uso exclusivo das mulheres. Mesmo a pouca luz, dava para ver que lá fora o sol brilhava com intensidade. 

 

O meio-dia se aproxima. A presença do sol é um sinal auspicioso. Não apenas sobre a próxima colheita. Mas de que as tradições indígenas terão continuidade. Foi em silêncio que crianças e adultos deixaram a Opy para semear o milho. Cumpria-se ali um dos rituais mais importantes para os Guarani. Não por nada eles são chamados de guardiões do milho.

No centro da Opy, fica uma fogueira acesa. As cepas de madeira queimavam lentamente. É um dos principais elementos da sessão: produzir o fogo que alimenta as ervas dos cachimbos. Espigas colocadas sobre uma espécie de altar, onde recebiam o fumacê dos rezadores, acompanhados de rezas e cânticos puxados pelo coral Yvÿtcï Ovy (Nuvens Azuis). 

 

O som do mbaraka (chocalho) e o violão entoavam forte. Entre os Guarani existe uma divisão sobre quem toca o quê. É mais comum para homens instrumentos de cordas e o tambor, enquanto o takuapu, o bastão, que tem simbolismo ligado à fertilidade, ser de uso exclusivo das mulheres. Mesmo a pouca luz, dava para ver que lá fora o sol brilhava com intensidade. 

 

O meio-dia se aproxima. A presença do sol é um sinal auspicioso. Não apenas sobre a próxima colheita. Mas de que as tradições indígenas terão continuidade. Foi em silêncio que crianças e adultos deixaram a Opy para semear o milho. Cumpria-se ali um dos rituais mais importantes para os Guarani. Não por nada eles são chamados de guardiões do milho.

No cemitério, covas ficam com pés voltados ao sol nascente e não há flores

Cada cultura tem o movimento de renovação e adaptação ao mundo em que está inserida. A morte, por exemplo, sofreu vários processos de percepção ao longo da história. Antigamente, tanto os Guarani como os Tupi enterravam o corpo dentro da casa, a qual era abandonada em seguida. Por influência dos jesuítas, começaram a construir cemitérios, que hoje ficam em pontos mais afastados das aldeias. 

 

Nossa equipe teve permissão para visitar um desses lugares sagrados para o povo Guarani. Foi na Aldeia Morro dos Cavalos, em Palhoça. O cemitério fica no meio da mata, afastado das casas. Há uma explicação: eles acreditam que os mortos rondam os túmulos. O medo que sentem não é da morte, mas, sim, do falecido — ou melhor, da alma que saiu do corpo, a anguêry, e que pode causar mal às pessoas, segundo as crenças Guarani. 

 

Entramos no cemitério acompanhados por duas lideranças. Existem regras para a visita: poucas pessoas de uma só vez e a chegada em silêncio, pois os espíritos precisam de paz. Não há cruzes e/ou placas de identificação. O sepultamento é feito direto na terra, sendo que os cuidados com a cova são de responsabilidade de cada família. Algumas têm árvores plantadas, como a palmeira, em referência à memória de Tataendy Rupa, educador com importante papel na luta pela terra indígena e que dá nome ao Centro de Formação da comunidade. 

 

Existem dois túmulos recentes de crianças, ambos marcados por pequenas pedras em formato de círculo. Há velas, mas não flores. Um dos hábitos utilizados pelos Guarani para manter os espíritos no cemitério, e consequentemente afastados das casas, é o de não plantar flores perto das residências. Desta forma, os espíritos não se aproximam. 

 

Os Guarani têm uma prática de sepultamento em comum: o corpo fica com os pés voltados para o sol nascente para que encontrem mais facilmente o caminho para a terra de Sem Males. Nos primeiros dias pós-morte, eles costumam acender uma fogueira para iluminar o caminho do espírito. Quando a alma já chegou no outro mundo, pode aparecer em sonho e dar conselhos. 

Sobre as terras Indígenas

Conheça Kerexu Yxapyry, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e uma das principais lideranças dos povos originários do país. A reportagem esteve com ela na Terra Indígena do Morro dos Cavalos, em Palhoça, onde Kerexu vive e desenvolve trabalhos com as novas gerações dos Guarani em Santa Catarina

Conheça Kerexu Yxapyry, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e uma das principais lideranças dos povos originários do país. A reportagem esteve com ela na Terra Indígena do Morro dos Cavalos, em Palhoça, onde Kerexu vive e desenvolve trabalhos com as novas gerações dos Guarani em Santa Catarina

NAVEGUE ENTRE AS ETNIAS

GUARANI

 

 

KAINGANG

 

 

 

XETÁ

 

 

 

XOKLENG

 

 

 

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Expediente

Reportagem: Ângela Bastos

Imagens: Patrick Rodrigues, Sirli Freitas, Tiago Ghizoni e Divulgação

Edição de vídeo: Luiza Monteiro e Bianca Anacleto

Roteiro de vídeo: Carolina Marasco, Eduarda Hillebrandt e Raphaela Suzin

Design: Ciliane Pereira

Edição: Everton Siemann e Raphaela Suzin

Edição SEO: Carolina Marasco

Publicado em 03/12/2022